sábado



Serem doze: A eleição de Matias (Actos 1, 15-26)

Este relato de eleição de Matias parece responder a duas preocupações maiores. A primeira é necessário explicar como um dos Doze escolhido por Jesus o pode trair. Portanto para tal, Pedro apela às Escrituras: esta defecção entra misteriosamente no plano de Deus; Judas é um dos ímpios de que fala o Livro da Sabedoria e que, por ter desprezado o justo e abandonado Senhor (Sab 3,10), “tornar-se-ão em infame cadáver; Deus os precipitará de cabeça para a frente”(Sab 4,19; cfr. Act 1,18). (Judas cumpriu a sua função na drama da historia da salvação, para alguns acaba a sua parte na drama mais cedo, é no caso de Judas e outros leva mais tempo, caso de outros discípulos, eles tinham que anunciar e testemunhar aquilo o que viveram e ouviram de Jesus) E duas citações de salmos mostram que alguém deve tomar o seu lugar. Mateus, por seu lado, tentará a mesma explicação mas apoiando-se em outros textos e apelando a tradições populares. (Mt 27, 3-10).
A segunda preocupação é serem Doze. Porquê esta vontade? Jesus tinha escolhido doze discípulos “para andarem com ele” (Mc 3,14) e anunciou-lhes que no fim dos tempos se sentariam consigo “para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19, 28). Este número doze é tradicionalmente o de Israel, e os profetas anunciavam, para o fim dos tempos, a restauração das doze tribos. Esta vontade dos primeiros discípulos de serem doze manifesta, pois, a consciência que têm de serem o verdadeiro povo de Deus, o novo Israel. É, por isso, um importante sinal: antes de manifestarem uma determinada ruptura com Israel, os cristãos pretendem primeiro exprimir a continuidade; é o desígnio do Deus fiel que neles se realiza. A Igreja de Jesus Cristo é nova mas simultaneamente, nasce idosa com 1.500 anos de tradições, herdeira da promessa feita a Abraão e aos antepassados. Esta ligação a uma tradição, em continuidade e em ruptura, talvez se exprima também no modo da eleição de Matias. Parece retomar-se aqui um ritual judaico de eleição comunitária, com os seus três elementos tipicamente judaicos: referência às Escrituras, comentário actualizador e oração. Mas, se existe uma situação de continuidade, também a ruptura surge muito nítida: a oração dirige-se ao Senhor, isto é, a Jesus glorificado; e os Doze não são escolhidos por pertencerem a uma determinada tribo sacerdotal, por exemplo, mas porque foram escolhidos por Jesus. Podemos destacar ainda, neste relato, outros três elementos importantes. Desde o desaparecimento de Cristo sob a forma carnal, é Pedro que toma a primeira iniciativa dos Actos dos Apóstolos: isto é, reconhecer-lhe um lugar e um papel particulares. E encontramos também a teologia de Lucas sobre o papel da «testemunha». Para encontrar um substituto de Judas, Pedro procura alguém «dentre os homens que nos acompanharam durante todo o tempo que Jesus Nosso Senhor viveu no meio de nós, a partir do baptismo de João até ao dia em que nos foi arrebatado para o Alto» (Act 1,21-22). Mas isso não basta para ser testemunha «da ressurreição»; é necessária ainda uma escolha do próprio Jesus, que permita testemunhar sobre o significado do acontecimento no presente da Igreja e agregue a um corpo de testemunhas. Lucas termina enfim o seu relato, com estas palavras: «Matias foi incluído entre os onze Apóstolos».

sexta-feira

ACTOS DOS APÓSTOLOS - UMA PERSONAGEM E UM PROGRAMA TEOLÓGICO

Pedro e Tabita (Dorcas) são as personagens principais do seguinte micro-relato lucano: Act 9,36-43 - A ressurreição de Dorcas. (1)

A doença e morte de Tabita (Dorcas) foi motivo para dois homens, membros do povo judeu, interpelarem Pedro (Act 9,37-38). Pedro tem os mesmos poderes taumatúrgicos de Jesus? Mais do que isso. A ressurreição de Dorcas revela a presença de Jesus ressuscitado. Jesus é o Senhor.

Crer em Jesus, como a discípula actuante na comunidade, é ter necessariamente a possibilidade da Salvação.
Tabita (Dorcas) era “notável pelas boas obras e esmolas que fazia” (Act 9,36) e, assim, integrava na comunidade viúvas pobres e estrangeiras. Ela era uma exemplar mulher de fé, uma tecelã (2) capaz de prosperidade e tinha total dedicação à comunidade, razões pelas quais Pedro a ressuscita. A primeira dessas razões de ser ressuscitada é, evidentemente, a fé, ou melhor a comunhão com Jesus que liberta e é presença de amor. Ser generosa e compassiva não teria sido suficiente.

Ressuscitando Tabita (Dorcas), Pedro exprime, pragmaticamente, o amor ao próximo e a fidelidade a Deus. Ambos fazem parte de uma comunidade judia que não fica fechada sobre si-mesma, mas interessa-se, profundamente, pelo desenvolvimento da missão fora do Judaísmo. Os que crêem em Jesus Messias, os discípulos, formam a Igreja. A Igreja tem as suas raízes do lado de Jerusalém, e em Jope, o que significa que a História da Salvação começa em Israel, ainda que se abra à universalidade.

O Império Romano é não só o espaço geográfico e político de expansão, mas o espaço que engloba a antiguidade judia e a modernidade romana. De um lado está a tradição, do outro a abertura ao mundo. É mais fácil aceder ao Deus universal a partir da universalidade do Império.

O autor dos Actos dos Apóstolos é, essencialmente, o homem da integração, que interpela a Igreja de todos os tempos à unidade e à comunhão, à pregação universal do Evangelho, à vida segundo o Espírito de Deus. Ele constrói uma tensão entre Jerusalém e Roma, na procura da identidade cristã que se forma entre o particular e o universal, entre as origens e o futuro, entre a tradição e a abertura ao mundo. Ele constrói uma personagem chamada Tabita (Dorcas) no pólo de Jerusalém, dada a sua proximidade geográfica, cultural e religiosa de Jope.


(1) Há na Bíblia , além desta ressureição, várias menções à ressureição (em grego: anastasis, anazao, egeiro) :
Elias – ressuscitou o filho de uma viúva (1Rs 17,17-24)
Elizeu – um filho de um sunamita (2Rs 4,32-37)
Jesus – filha de Jairo (Mt 9,18-26; Mc 5,21-24.35-43; Lc 8,40-42.49-56) ; filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17); Lázaro (Jo 11,1-44)
Duas testemunhas no período da Tribulação – Ap 11,3-13
Senhor Jesus Cristo (Mt 28,6-7;Lc 24,34;Jo 2,22)

(2) Na Bíblia, que tem carácter fundacional da nossa civilização, ao definir uma mulher forte e virtuosa, o autor do Livro dos Provérbios reconhece nela as qualidades de uma tecelã capaz de garantir a prosperidade e conquistar a sabedoria, a partir do seu trabalho manual.

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL: MARGUERAT, Daniel, “Un Programme Théologique d’Intégration” in La Première Histoire du ChristianismeLes Actes des Apôtres, Labor et Fides – Cerf, Genève – Paris, 1999

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HELENA FRANCO
2007-10-26























quinta-feira

ACTOS DOS APÓSTOLOS - "TODOS NÓS SOMOS JUDEUS"

Ficámos profundamente chocados, ao ouvir Esther Mucznick, judia, no evento “Religiões, Diversidade e Não-Discriminação” que teve lugar a 19 de Outubro na Fundação Mário Soares. Ela fez uma comunicação, em que deu ênfase a uma informação, já noticiada pelos meios de comunicação social, que não nos deixou indiferentes, uma vez que temos o suporte da nossa realização espiritual na comunidade humana.

Chocou-nos, pois, o facto dos Hammerskin, os quais constituem um movimento neonazi dos mais radicais a nível mundial, na noite de 25 de Setembro, terem vandalizado 17 campas no cemitério judaico de Lisboa, e terem cravado nas pedras das lápides cruzes suásticas nazis.

Sabe-se que o líder dos perigosos Portuguese Hammerskins é o skinhead Mário Machado. Por outro lado, sabe-se que o “lobo nazi” como se apresenta o skinhead Carlos Seabra vandalizou o referido cemitério. Predador, nefasto, ardiloso, devorador, “o homem é lobo para outro homem”. (1)

Pudéssemos nós saber o que se passa no subsolo, a decomposição irreversível dos corpos, então no nosso percurso existencial não haveria talvez lugar para o anti-semitismo, isto é, para a expressão do ódio e da violência raciais.

O Parlamento afirmou que “a liberdade religiosa, a compreensão recíproca e o diálogo entre diversas culturas e valores civilizacionais constituem património intangível da sociedade contemporânea em Portugal”, ao aprovar por unanimidade voto a condenar os actos de vandalismo ao cemitério judaico.

Quando a comunidade israelita de Lisboa teve uma cerimónia associada a este crime (2), Alberto Costa, ministro da Justiça, declarou: “perante esta agressão, todos nós somos judeus”.

Emocionalmente, afirmamos que o cristianismo tem berço judaico. Afirmamos, ainda, que a comunidade cristã das origens tem uma perspectiva sociológica, histórica, antropológica e teológica baseada na partilha (Act 2, 42-47). E é, de certo modo, a partilha que caracteriza esta comunidade de leitores.


(1) Homo homini lupus.Trata-se de uma expressão latina de Maquiavel, a partir do pensamento do poeta latino do século III a.C. Plauto.

(2) Este crime foi qualificado pela Comunidade Israelita de Lisboa não só crime contra a comunidade Judaica, bem como uma ofensa à Sociedade Civil Portuguesa, à Democracia e ao Estado de Direito.


HELENA FRANCO
2007-10-25

quarta-feira

S. Pedro luz dos doentes, coxos...

A minha 1ª personagem anterior foi S. Pedro.
Ele é essencialmente protagonista do anúncio do Evangelho. Ele faz uma coversão muito radical entregado-se de corpo e alma. Fará com que os coxos andem, e os doentes sejam curados... Por isso, o modo como ele se converte e a radicalidade que ele toma de anunciar e testemunhar Jesus ressucitado torna-se um dos modelos do anúncio. Ele torna-se iluminador da essência do cristianismo e também médico das almas. Eu creio que os actos dos apóstolos é o núcleo do cristianismo; e Pedro tem essa compreensão da fé que ele realiza, e esta não é só fruto do seu esforço, tem presente o espírito santo. S. Pedro pela sua conversão e anúncio ensina-nos que a conversão não tem tempo nem idade, é sempre uam disponibilidade de fé; e também tanto o anúncio, a conversão é fruto do Espírito de Deus. O que está na origem da igreja é o Espírito do senhor. Portanto, o espírito do Senhor está, e continua sempre a agir na história da igreja, está agir nos seus seus membros. E os actos nos mostram a presença de Deus no começo do critianismo através dos apóstolos; e mostra- nos também as difculdades que eles tiveram no seu dia a dia. O livro dos actos dos apóstolos é um tesouro onde podemos ler a nossa, vida, história enquanto experiencia; e Pedro torna-se luz no conjunto dos actos pela forma como ele conduz a sua fé em Jesus Cristo.

domingo

ACTOS DOS APÓSTOLOS - POR UMA TEOLOGIA DA PALAVRA

Quer na Babel bíblica, quer na Babel do título do filme de 2006 de Alejandro Gonzalez Iñárritu, a falta de comunicação é um abismo de ausência que se abre entre as pessoas com diferenças culturais, com dificuldades de relacionamento e de diálogo, com dificuldades até de se entenderem a si-mesmas.

A actriz Rinko Kikuchi (Chieko) faz uma das cenas mais poéticas do filme ao pôr-se nua na varanda do luxuoso apartamento onde mora. A nudez é metáfora do despojamento e do abandono. Não podendo comunicar pela palavra, uma vez que a personagem Chieko é surda-muda, comunica com a linguagem corporal do toque. Ela (nua) e o pai dão as mãos e abraçam-se. Eles abraçam-se infinitamente na varanda.

O pai de Chieko é um pai bondoso que, sem se sobressaltar, caminha até à filha. Não há palavras, mas ele é palavra, sendo resposta para a necessidade de amor de Chieko. O pai bondoso é metáfora da Palavra de Deus a ser abraçada, isto é, plenamente acolhida por nós.

Alejandro Gonzalez Iñárritu sabe observar, narrar e poetizar. Tóquio, no plano nocturno, é o lugar da incompreensão e dos problemas da linguagem. É Babel.

“A Bíblia é um poema”, afirma Paul Ricoeur. E os poemas originam-se na palavra.

Para Paul Ricoeur, judaísmo e cristianismo dizem-se fundados sobre uma palavra recebida como Palavra de Deus.

O conceito de “Palavra de Deus” está, para Karl Barth, intimamente associado à noção do Homem que escuta, objecto do Deus que fala.

Para a Teologia da Palavra de Karl Barth, o Homem compreende-se a si-mesmo, à sua existência, a partir da Palavra de Deus. Nenhuma palavra humana é capaz de levar o Homem a esta compreensão de si-mesmo e da sua existência.

Nos Actos dos Apóstolos haverá uma entrega total à palavra?

Por três vezes se apresenta a força da palavra (Act 6,7; Act 12,24; Act 19,20), a adesão ao kerigma passa por receber a própria palavra (Act 13,42), se o eunuco se torna cristão a partir da palavra isso significa que a palavra é o ponto de encontro com o kerigma (Act 8,26-31), o acontecimento cristão é acontecimento da palavra e a comunidade é uma criação da palavra (Act 11,1), esta palavra vem na continuidade das Escrituras (Act 17,11), há um espaço da palavra (Act 20,7-12) que é mais importante que a reanimação de Êutico, a qual tem ressonâncias veterotestamentárias (2Re 4,32).

A palavra supõe um despojamento, um abandono e uma entrega de quem escuta. Os apóstolos, ouvintes de Deus, entregaram-se totalmente à palavra.

A palavra é necessariamente Actos dos Apóstolos.


E é poeta o Deus que fala. Com a palavra.


BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL: RICOEUR, Paul, Lectures 3 – Aux frontières de la philosophie, Seuil, Paris, 1994; BARTH, Karl, Dogmatique – La doctrine de la parole de Dieu - Labor et Fides, Genève, 1953.


HELENA FRANCO
2007-10-21