domingo

ACTOS DOS APÓSTOLOS - POR UMA TEOLOGIA DA PALAVRA

Quer na Babel bíblica, quer na Babel do título do filme de 2006 de Alejandro Gonzalez Iñárritu, a falta de comunicação é um abismo de ausência que se abre entre as pessoas com diferenças culturais, com dificuldades de relacionamento e de diálogo, com dificuldades até de se entenderem a si-mesmas.

A actriz Rinko Kikuchi (Chieko) faz uma das cenas mais poéticas do filme ao pôr-se nua na varanda do luxuoso apartamento onde mora. A nudez é metáfora do despojamento e do abandono. Não podendo comunicar pela palavra, uma vez que a personagem Chieko é surda-muda, comunica com a linguagem corporal do toque. Ela (nua) e o pai dão as mãos e abraçam-se. Eles abraçam-se infinitamente na varanda.

O pai de Chieko é um pai bondoso que, sem se sobressaltar, caminha até à filha. Não há palavras, mas ele é palavra, sendo resposta para a necessidade de amor de Chieko. O pai bondoso é metáfora da Palavra de Deus a ser abraçada, isto é, plenamente acolhida por nós.

Alejandro Gonzalez Iñárritu sabe observar, narrar e poetizar. Tóquio, no plano nocturno, é o lugar da incompreensão e dos problemas da linguagem. É Babel.

“A Bíblia é um poema”, afirma Paul Ricoeur. E os poemas originam-se na palavra.

Para Paul Ricoeur, judaísmo e cristianismo dizem-se fundados sobre uma palavra recebida como Palavra de Deus.

O conceito de “Palavra de Deus” está, para Karl Barth, intimamente associado à noção do Homem que escuta, objecto do Deus que fala.

Para a Teologia da Palavra de Karl Barth, o Homem compreende-se a si-mesmo, à sua existência, a partir da Palavra de Deus. Nenhuma palavra humana é capaz de levar o Homem a esta compreensão de si-mesmo e da sua existência.

Nos Actos dos Apóstolos haverá uma entrega total à palavra?

Por três vezes se apresenta a força da palavra (Act 6,7; Act 12,24; Act 19,20), a adesão ao kerigma passa por receber a própria palavra (Act 13,42), se o eunuco se torna cristão a partir da palavra isso significa que a palavra é o ponto de encontro com o kerigma (Act 8,26-31), o acontecimento cristão é acontecimento da palavra e a comunidade é uma criação da palavra (Act 11,1), esta palavra vem na continuidade das Escrituras (Act 17,11), há um espaço da palavra (Act 20,7-12) que é mais importante que a reanimação de Êutico, a qual tem ressonâncias veterotestamentárias (2Re 4,32).

A palavra supõe um despojamento, um abandono e uma entrega de quem escuta. Os apóstolos, ouvintes de Deus, entregaram-se totalmente à palavra.

A palavra é necessariamente Actos dos Apóstolos.


E é poeta o Deus que fala. Com a palavra.


BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL: RICOEUR, Paul, Lectures 3 – Aux frontières de la philosophie, Seuil, Paris, 1994; BARTH, Karl, Dogmatique – La doctrine de la parole de Dieu - Labor et Fides, Genève, 1953.


HELENA FRANCO
2007-10-21

7 comentários:

jtm disse...

Helena, fico com mais pena de ter perdido esse filme. E gostei muito desta "colagem" que fazes dos materiais diversos.

MaRcO disse...

Partilho da mesma opinião do professor. Agora... é esperar pelo DVD.
Achei muito interessante a caracterização que fazes ao pai dessa personagem: dás um contributo para uma meditação pessoal e um estímulo para o estudo.
A palavra é algo que facilmente é banalizado e sufocado. A tua postagem vem "apontar" e "apelar", precisamente, para o contrário.
Bom post!

Helena Franco disse...

CARO PROFESSOR, neste blog, estou a descobrir como os caracteres são hipnotizantes, como é dito no livro "Silêncio dos Livros" de George Steiner. Os caracteres são iguais a pedacinhos de papel com os quais se faz uma colagem engraçada. QUE BOM ter o seu comentário de professor tão exigente quanto apoiante. OBRIGADA.
E se me permite, não se limite a ver o filme pelo meu olhar. Não sendo, agora, possível vê-lo no écran gigante, veja-o em DVD no pequeno écran. Porque sim. DESCULPE O ATREVIMENTO.

Helena Franco disse...

MARCO, na verdade, o DVD está disponível na FNAC do Chiado, embora ver um DVD não seja a mesma coisa.
Caracterizar o pai de Chieko como pai bondoso é fácil, caracterizá-lo como palavra é oportuno, dada a itencionalidade do post, mas o que há de mais místico e de mais teológico é identificá-lo com Deus-Pai. Esta identificação não me sai da cabeça, pelo que a partilho contigo e com todos os demais leitores.
Do ponto de vista místico, nós somos pessoas surdas-mudas, pois não ouvimos Deus nem falamos com Deus. É Ele que caminha ao nosso encontro. É Ele que nos toca. É Ele que nos abraça.
Nós estamos submersos no silêncio; Ele fala. Porque o silêncio de Deus é som. E porque é do som que a palavra nasce.

Helena Franco disse...

MARCO, esqueci-me da palavra mais importante que não é nada banal: OBRIGADA.

Cátia Sofia Tuna disse...

Querida Helena...
os teus textos são preciosos. Também tu és uma mulher da Palavra!

Post Scriptum: Deixa-me dizer-te que para mim é qualquer coisa de deslumbrante ver o Marco a comentar-te. Obrigada porque fazes com que um pouco da sua profundidade suba à superfície.

Helena Franco disse...

OBRIGADA,CÁTIA!

Parece-me que nós todas (tu, eu e as outras colegas) somos presenças femininas a reflectir a grandeza das mulheres da Bíblia, na fecundidade dos nossos silêncios e das nossas palavras. Somos, pois, tecelãs que, com palavras, transmitem inconfundivelmente a Palavra.

Como pessoas, há em nós, homens e mulheres, várias camadas de profundidade, como tu certamente sabes. E o homem espiritual que o Marco é levou-me a ser um pouco mais profunda do que até aí.

MAIS UMA VEZ: OBRIGADA A TI, CÁTIA! E A TI, MARCO!