domingo

ACTOS DOS APÓSTOLOS - PSICANÁLISE E TEOLOGIA

Este blog é uma casa habitada por todos nós, onde cada um de nós tem o seu próprio espaço individual. À nossa pessoa compete abrir de par em par as janelas da psicanálise e da teologia, para vermos em conjunto as paisagens que a nossa voz anuncia a todos os leitores da comunidade. Partimos, então, de um trecho do micro-relato lucano “Ananias e Safira” (Act 5,1-6), fazendo um zoom (se nos é permitida essa expressão cinematográfica) sobre a questão da verdade.

ANANIAS E SAFIRA – A QUESTÃO DA VERDADE

“Entretanto, certo homem, chamado Ananias, com sua mulher Safira, vendeu uma propriedade, mas, em acordo com sua mulher, reteve parte do preço e, levando o restante, depositou-o aos pés dos apóstolos.

Então, disse Pedro: Ananias, porque encheu Satanás teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, reservando parte do valor do campo? Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não estaria em teu poder? Como, pois, assentaste no coração esse desígnio? Não mentiste aos homens, mas a Deus. Ouvindo estas palavras, Ananias caiu e expirou, sobrevindo grande temor a todos os ouvintes. Levantando-se os moços, cobriram-lhe o corpo e, levando-o, o sepultaram.”

Pensando psicanaliticamente, a questão da verdade é fundadora, quer em termos epistemológicos, quer em termos clínicos. E, pensando teologicamente, a questão da verdade é, ao mesmo tempo, mistagógica e cristológica, estando radicada no centro da tríplice afirmação de Jesus Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (Jo 14,6)

Passamos, agora, a analisar o trecho de Lucas. A mentira de Ananias não é a mentira de um mentiroso porque ter os lucros como objectivo é uma estratégia de negociante, que dá legitimidade à reserva de parte do valor da propriedade. É, antes, uma mentira mental, sem correspondência com o real, pois o real consiste na adesão ao cristianismo que pressupõe a coerência com a partilha fraterna (cf. Act 2,45). A transição deste universo mental para outro ocorre por meio da descida às profundidades onde Deus habita. Essa descida é a psicanálise ao encontro do "Deus em nós" dos psicanalistas, mas também é a oração perseverante (cf Act 2,42), que toca esse mesmo Deus, o Deus dos cristãos, na Pessoa do Espírito Santo e na totalidade do Deus-Trino, que re-une as três Pessoas. Deus-Trino, sendo Realidade Ùltima, tem natureza simbólica, o que introduz, psicanaliticamente, uma fé científica, que é, ainda, religiosa, na medida em que sem afirmar a essência simbólica de Deus cometeríamos uma idolatria. O Deus dos psicanalistas está na vizinhança do Deus nomeado pela teologia negativa, porque Ele é o Infinito e o Inominável. E o Homem, quem é ele? Ele é aquele para quem a mentira a Deus é constituinte do objecto enlouquecedor. A loucura é, neste trecho, simbolizada pela morte de Ananias, que teria a vida eterna se se tivesse deixado transformar pela verdade, principalmente, na busca da verdade de Jesus, a quem o evangelho pregado por Pedro anuncia.

BIBLIOGRAFIA: DIAS, Carlos Amaral, Tabela para uma nebulosa – Desenvolvimentos a partir de Wilfred R. Bion, Fim de Século, Lisboa, 1997; REZENDE, António Muniz de, “A questão da verdade” in AA.VV., Bion Hoje, Fim de Século, Lisboa, 1996.

HELENA FRANCO
2007-11-25

4 comentários:

Julie disse...

Gostei muito da identificação de Deus com a verdade, pois realmente a verdade é tanto um ponto de partida como um ponto de chegada e envolve o todo o nosso ser. Acho que o desafio do cristão é abrir-se a esta verdade (de letra maiúscula e minúscula). Lembro-me do livro Crime e Castigo, em que a personagem principal só pára de sofrer depois de contar a verdade e abrir-se à Verdade. Bom post!

Helena Franco disse...

JULIE, não sei se posso esclarecer-te mais alguma coisa... Quando pudermos dizer como São Paulo "Já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim" (Gal 2,20), a verdade terá tomado plenamente conta de nós. E a nossa interioridade será uma morada da verdade porque, como diz a mística Isabel da Trindade, a Trindade habita em nós. O contributo da psicanálise é o da descoberta da verdade que atravessa a obra de Bion (o autor em que me apoiei) e da interioridade que leva os psicanalistas a falarem do "Deus em nós" que não é senão o Cristo de São Paulo e a Trindade de Isabel da Trindade. Ah, parece-me que Crime e Castigo pode ter uma leitura cristológica, mas ainda não li. Talvez nas férias do Natal. Ainda bem que este post não te passou despercebido, pois foi a minha primeira oportunidade de pensar/escrever sobre a psicanálise e a teologia juntas. MUITO, MUITO OBRIGADA PELO TEU COMENTÁRIO.

zeferino disse...

Ole Helena é formidavel o modo como argumentaste este relato lucano e também o sentido de entende-la do ponto de vista psicanalitica e teológica; eu penso que é uma riqueza grande ver os relatos nessa perspectiva e este modo de ver a teologia ajuda-nos a perceber também a nossa própria realidade. o texto tem uma carga espritual e existencial muito gande. força... zefe

Helena Franco disse...

ZEFERINO, eu não sou psicanalista nem teóloga, mas, na verdade, dei o melhor de mim própria, pelo que me satisfaz bastante ter o reconhecimento de um colega sensível como tu. Se lês bem o francês e estás a ter Evangelhos Sinópticos, sugiro-te que consultes a obra de Françoise Dolto: L' Evangile au risque de la psicanalise. Ela é uma psicanalista da escola francesa, que tem muita sensibilidade. Vale a pena conhecê-la até porque a obra dela é bastante acessível. Penso que são os comentários que enriquecem os post... MUITO OBRIGADA PELO TEU COMENTÁRIO.