quarta-feira

Os"não-actos" dos Apóstolos ou partilha de perguntas

Há uns dias fui à oficina; o carro precisava de uns pneus da frente novos. Enquanto os substituíam, esperei sentada na pequena sala da recepção, onde estava a “secretária da oficina”, dentro do balcão a mexer na papelada, a atender e a fazer telefonemas. Estivemos a conversar. Primeiro sobre a filha dela e as dificuldades que tinha na escola. Depois sobre os seus problemas relacionais. Depois sobre os seus problemas em geral. Depois sobre os problemas em geral da adolescência. Até que a senhora me perguntou qual o curso que eu estava a tirar; a partir daí o tema passou a ser religião. Foi breve.
- Eu já não acredito nessas coisas… - disse-me.
- Então…
- Com a idade, com a vida… isso vai passando.
- Pois…

E baixei os olhos, que é a primeira coisa que faço quando tenho vergonha de qualquer coisa que fiz (ou não fiz).

“- Pois…”

“…”

Porque é que não lhe narrei uma das histórias que eu e o Espírito construímos juntos? A da minha viagem até Damasco? Porque é que não ardi frente a ela e me neguei a dar-lhe uma migalha de qualquer coisa que me habitasse? Porque não lhe expliquei o que eu tinha sido e no que me tornei? Porque não lhe contei das minhas prisões abertas? Porque não deixei de ter ouro, nem prata, nem complexos, nem cobardias, nem de me ter a mim própria talvez, para lhe falar de outra coisa? Porque é que perdi o barco que ia para Roma?

Afinal, eu não estava no sinédrio, à frente dum grupo de sumos sacerdotes furiosos nem numa sala de audiência perante um rei Agripa curioso mas poderoso. Encontrava-me numa sala, com algumas cadeiras e uma mesa cheia de revistas e jornais, com a televisão sem som pendurada na parede, e tinha perante mim a simpática secretária da oficina… Então qual era a razão para o meu silêncio? Porque é que escondi tantos daqueles segredos que se fizeram para serem gritados nos telhados?

A leitura do livro dos Actos anda a dar-me fome de heroísmo. Por vezes ao lê-lo, sinto que algo me dá a mão e me leva a visitar o cemitério onde foi já várias vezes sepultada a minha coragem. A leitura acende outras perguntas teimosas: “Quando é que enlouqueces assim? Quando é que te embriagarás por isso que não embriaga? Quando é que estarás firme de que nem um dos teus cabelos será tocado? Quando perderás o medo das mãos com sete pedras e dos naufrágios?”

Termino pedindo desculpa a toda a comunidade de leitores pelo carácter pouco académico deste texto.

7 comentários:

Helena Franco disse...

Que grande flexibilidade, Cátia! Das tuas competências normativas à fenomenologia que torna este texto poderossíssimo, há uma vi(r)agem interessante. Por mim, peço-te que não faças Teologia com espartilhos. Tal como até agora não fizeste. CORAGEM, CÁTIA!

Roberto Gil disse...

Cátia, tu às vezes surpreendes-me! :)
Antes de mais, obrigado por dares voz e corpo a perguntas que também são minhas e, suponho, de muito mais pessoas. Se acreditarmos nas máximas que dizem que o mais importante são as questões, então estás (estamos) no bom caminho.Um bom post!

vitorino disse...

Começaste por dizer "Os" não-actos",mas terminaste com alguns personagens dos Actos.A tua exposição foi linda,sobretudo a tua entrevista com a secretária da oficina enquanto esperavas pelo teu pneu.
A tua desculpa fez-me recordar,Agripa quando autorizou Paulo,a falar em tua defesa.Foi boa a tua partilha.

Paulo Paiva disse...

Gostei de ler o teu post, Cátia. Comentando acerca do que escreveste como um todo, penso que se trata de um texto acerca do teu mergulhar dentro da história do livro dos Actos. Reflectes sobre a forma como esse mergulhar nos influencia em diversos sentidos e de diversas maneiras. Isso acontece contigo e a qualquer pessoa que leia os Actos (mesmo que na pior das hipóteses, alguém os leia e conclua que esteve a perder tempo).
Por isso gostei de ler o post. Talvez sem quereres, colocas diversas questões hermenêuticas, bastante actuais. Para mim é certamente um post com carácter académico. Poderá, talvez, não ser muito científico, mas académico, creio que é.
Bom texto! Bom post!

Julie disse...

Cátia, também me junto aos nossos colegas em dizer que gostei mesmo muito do teu post! Realmente, queremos ser corajosos e queremos que as nossas vidas sejam um exemplo perfeito e é muito duro quando falhamos. Os Actos dão uma imagem de muito heroísmo mas também mantêm sempre que foi o Espírito a falar ou a fazer por eles. Acho que uma das coisas mais heroicas é levantar-se depois de ter falhado, e perceber que é assim que Deus também actua em nós, não somente através de nós. Obrigada pela reflexão, fez-me pensar muito!

Cátia Sofia Tuna disse...

Em primeiro lugar, muito obrigada pelos comentários...

"peço-te que não faças Teologia com espartilhos. Tal como até agora não fizeste." Claro Helena, mas no meu caso acho que por vezes me falta um pouco de impulsividade e precipitação.

"obrigado por dares voz e corpo a perguntas que também são minhas " De nada. Como uma vez disse o nosso prof. Jerónimo Trigo "a" resposta mata a pergunta.

"sobretudo a tua entrevista com a secretária da oficina" querido Vitorino, o uso do termo "entrevista" foi interessante... sim, de certa forma foi uma entre vista, um ver recíproco

"um texto acerca do teu mergulhar dentro da história do livro dos Actos." Para mergulhar nos Actos é preciso um boa "botija de ar", (no sentido de uma boa bagagem interpretativa) como as que os mergulhadores profissionais usam.

"perceber que é assim que Deus também actua em nós, não somente através de nós." acho esta frase muito bem conseguida... sem dúvida, Julie.

Cátia Sofia Tuna disse...

Bom... tenho de corrigir a minha primeira frase: o que queria de dizer é que por vezes tenho impulsividade e precipitação a mais.