domingo

Actos como uma visão historiográfica poética


Toda a história tem um ponto de vista, pois abarca consigo toda a envolvência política, social, cultural e económica de quem a traz a lume e, como tal, é uma reconstrução (sempre situada e incompleta) de uma situação, onde se procura uma linha unitária que ultrapassa a mera descrição. Principiando pela procura de vestígios do itinerário do homem, a história nunca é só descrição, pois não consegue abranger na totalidade o real, mas muito mais exercício de contemplação, uma vez que tudo tem densidade história. Procurando ter uma visão de conjunto, a síntese histórica, por ser contemplação, não foge ao domínio racional, mas antes o completa. Assim, em base na hipótese, reconstrói uma representação mental do passado, mantendo uma conexão entre o discurso e o objecto, afirmando, desta forma, a existência de uma ordem no mundo. Assim história é uma arte que procura comunicar com rigor uma hipotética reconstrução do passado.
E é esse também o objectivo dos Actos dos Apóstolos, pois Lucas não se baseia só nos “bruta facta”, uma vez que o seu alcance é selar o passado em relatos fundadores, onde o povo, ao longo das gerações, revê a sua identidade. Sendo uma visão historiográfica poética ou história em sentido forte, como afirma Ricoeur, Actos deixa-se também permeabilizar pelos procedimentos literários onde se faz sentir a desconexão entre discurso e objecto, onde se instala, por vezes, a desordem. Além disso, inaugura-se uma novidade literária relativamente à literatura greco-romana não só porque se preocupa com o real, não se deixando guiar pela fantasia heróica da mitologia e dos heróis gregos, como também pinta a narrativa com detalhes documentais, não os deixando, como era apanágio do mundo helénico, somente numa secção para esse efeito; além disso, Actos ancora o seu relato na história civil. Outra característica está no facto de Lucas retratar a vida dos discípulos de Jesus, não se deixando meramente estancar pela simples descrição, envolvendo as personagens de uma roupagem literária expressiva, de modo suscitar o interesse do leitor; contudo, o plano histórico de actos também se faz presente, se bem que não de modo absoluto, pois não se trata de um livro histórico, mas de uma visão historiográfica e literária poética.
Assim, tal como a historiografia na Grécia antiga primava pela componente educativa, assim também em Actos temos uma atitude paidêutica, mostrando-se ao longo da narrativa a evolução, nos seus altos e baixos, da cristogénese. Inverte-se somente duas das regras helénicas de fazer história, a saber, a não escolha de um motivo nobre (para os gregos), pois os cristãos eram considerados uma seita perseguida (a quinta linha do interesse comum); e, também, a regra da imparcialidade, uma vez que Lucas era um apologeta do cristianismo.

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