domingo

Por pouco...

24Neste ponto da sua defesa, Festo exclamou em voz alta:
- Estás doido, Paulo! A tua grande sabedoria faz-te perder o juízo.

25Disse Paulo:
- Eu não estou doido, excelentíssimo Festo! Pelo contrário, estou a falar a linguagem da verdade e do bom senso.
26O rei está inteirado destas coisas e, por isso, lhe falo francamente, pois não creio que ele ignore nada disto, tanto mais que não foi a um canto que tudo se passou! 27Acreditas nos Profetas, rei Agripa? Eu sei que acreditas.28Agripa respondeu a Paulo:
- Por pouco não me persuades a fazer-me cristão!

29Disse Paulo:
- Prouvera a Deus que, por pouco ou por muito, não só tu, mas todos quantos hoje estão a ouvir-me se fizessem tais como eu sou, à excepção destas cadeias!
30O rei levantou-se, assim como o governador, Berenice e os que estavam sentados com eles. 31Ao retirarem-se, diziam entre eles:
- Este homem nada fez que mereça a morte ou os grilhões.

32Agripa disse a Festo:
- Este homem poderia ser posto em liberdade, se não tivesse apelado para César.”
Act. 26, 24-32


Ler este excerto dos Actos é como estar num circo a olhar para um malabarista numa corda bamba, sem rede. E há, no texto, dois passos limite, em que o equilíbrio parece perder-se e se teme ou se anseia qualquer coisa demasiadamente… há dois “quases”: o rei Agripa quase se faz cristão (v. 28) e Paulo quase foi salvo (v. 32). Como se o leitor tivesse no carro sentado ao lado do autor que se torna aqui um condutor perigoso, a imprimir-lhe tensão com as suas curvas aceleradas e travagens bruscas.

Centro-me na resposta de Agripa: “Por pouco não me persuades a fazer-me cristão…”. “Por pouco…” pisou-se o limite mas preferiu-se a limitação. Paulo remata, finalmente, num lance quase impossível de defender… mas o guarda-redes, mesmo assim, desvia a bola do dentro da baliza com a ponta dos dedos. Transportou-o da mesmice até à fronteira do além, das cinzas secas até á fronteira para a brasa, mas Agripa caiu da corda bamba a um triz de pisar esse solo firme onde a loucura e a verdade são gémeas siamesas. Faltou-lhe um golpe de asa…

Os Actos são, de facto, uma escola de evangelização… aprendemos por exemplo que ela só pode ser o estender a verdade em forma de um tapete de lixa, perante o torrão de fósforo de que é feita a alma dos outros; nunca pode, porém, acendê-lo. Há um “pouco mais” que pertence ao homem, um pequeno pátio chamado “liberdade” onde ele fica a sós entre o sim e o não em que ele mesmo se decide.


Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
.
(…)
.
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
.
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
.
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
.
(…)
.
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário Sá Carneiro, Paris, 13 de Maio de 1913


Um pouco mais de ti (caríssimo Agripa) – e terias sido tu.

Um comentário:

Cátia Sofia Tuna disse...

No texto há um erro ortográfico... não é "tivesse" mas "estivesse". Desculpem.