sexta-feira

ACTOS DOS APÓSTOLOS - POR UMA TEOLOGIA POÉTICA

UMA CASA MUITO ENGRAÇADA (1)

“Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede…”

Parafraseando Rubem Alves, afirmamos como é gostoso brincarmos! Os brinquedos da nossa infância eram feitos de coisas materiais: madeira, plástico, metal, pano, papel. Mas também existiam brinquedos feitos com palavras. Uma graça é um brinquedo feito com palavras, que só serve para fazer a gente rir! Aquela música “uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada…” é também um brinquedo feito com palavras. “Poetas”, afirma Rubem Alves, “são as pessoas que fazem brinquedos com as palavras.”

Enquanto estudantes de teologia, seria tão gostoso brincarmos com as palavras!... Será que a teologia e a poesia se podem encontrar, quando há desenvolvimentos históricos que indicam um certo distanciamento entre a teologia e a literatura poética? Será que a literatura poética se pode pronunciar sobre os temas cristalizados pela teologia? A nós, parece-nos que sim. Os poetas são arquitectos de casas de papel. Os poetas constroem casas que mudam o destino das pessoas. Todos os poetas são teólogos, que prescindem dos títulos académicos, mas têm a responsabilidade de uma criação inspirada, que exprime afectos e possibilita o re-ligare.

O poeta é o Homem que volta sempre a encontrar outro Homem, numa viagem ao mundo da amizade e da fraternidade universal. Diz o poeta chileno Pablo Neruda:

“Amigo, com a tarde faz que se vá
Este inútil e velho desejo de vencer.
Bebe em meu cântaro se tens sede.
Amigo, com a tarde faz que se vá
Este desejo meu que toda a roseira me pertença.
Amigo, se tens fome come do meu pão.”

Estas palavras poéticas são uma metáfora eucarística, que nos leva a dizer que todo o poeta é Homem da comunhão. No âmago da literatura poética, há o espírito do comungar, do pôr tudo em comum característico dos primeiros cristãos. (Act 2,42-47) A poesia e a teologia são, aqui, convergentes, pelo que podemos afirmar que Lucas, o autor dos Actos dos Apóstolos, não é só, de modo explícito, teólogo, mas também implicitamente poeta.

Há uma afinidade temática entre Vinicius, Neruda e Lucas, em que a casa e a comunhão convergem num referencial único de teologia poética.


(1) A “casa muito engraçada” da letra de Vinicius de Moraes existe. Os versinhos distraíam as filhas de Vinicius numa visita ao amigo uruguaio Carlos Paez Vilaró, quando Casapueblo não passava de um atleriê de lata e madeira, construído por um artista excêntrico (o próprio Vilaró), numa encosta belíssima de Punta Ballena.
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HELENA FRANCO
2007-11-16

5 comentários:

Cátia Sofia Tuna disse...

Poetas “são as pessoas que fazem brinquedos com as palavras.”
Muito bonita esta frase

Cátia Sofia Tuna disse...

Mas... já agora, querida Helena, e desculpa a pergunta... sendo São Lucas implicitamente um poeta, como afirmas, em que medida é que ele faz brinquedos com as palavras?
PS- Responde só se quiseres

Helena Franco disse...

CÁTIA, em primeiro lugar, obrigada pelos teus comentários. Em segundo lugar, nuvem (Act 1,9), alimento (Act 10,10-16; Act 11,5-10), palavra (Act 6,7; Act 12,24; Act 19,20; etc) são personagens nos relatos lucanos dos Actos dos Apóstolos, isto é, Lucas transforma essas palavras (nuvem, alimento, palavra) e essa transformação não é senão a fabricação de brinquedos. Porque é-nos mais fácil apropriar-mo-nos desses brinquedos, que nos fazem aceder a realidades mais fundas.
A nuvem corresponde à presença de Deus, o alimento à universalidade do cristianismo, a palavra à constituição da comunidade cristã.
Se nisto tudo Lucas escritor faz literatura poética em directo, também o faz indirectamente, através dos ecos veterotestamentários, tais como este: "Vai a este povo povo e dize-lhe: De ouvido, ouvireis e não entendereis; vendo, vereis e não percebereis. Porquanto o coração deste povo se tornou endurecido; com os ouvidos ouviram tardiamente e fecharam os olhos, para que jamais vejam com os olhos, nem ouçam com os ouvidos, para que não entendam com o coração, e se convertam, e por mim sejam curados."(Act 28,26-27) Através destes ecos, Lucas faz um jogo de palavras, que é verdadeiramente um brinquedo. Os brinquedos, Cátia, são coisas muito sérias! Respondi à tua pergunta?

Cátia Sofia Tuna disse...

Respondeste, Helena! Muito obrigada... Tu também fazes brinquedos com as palavras.

Helena Franco disse...

CÀTIA, o meu próximo post é um brinquedo feito especialmente a pensar em ti. Considero que os outros leitores da comunidade serão capazes de me perdoar pelo post.