terça-feira

Ainda sobre…

Acho interessante partilhar com a restante comunidade de leitores, ainda sobre o pequeno debate (chamemos-lhe assim) da aula de ontem em torno do meu comentário ao texto do Ricardo, uma breve reflexão que poderá esclarecer alguns aspectos.

A psico-pedagogia actual desaconselha, no campo das técnicas de animação ou ensino de crianças, uma prática muito recorrente: trata-se do acto de se dar um papel com um desenho ou imagem para as crianças pintarem. Recomenda, ao invés, que os educadores simplesmente forneçam à criança uma folha em branco, para que nela possam desenhar e pintar livremente. Argumentam que desta forma a capacidade imaginativa e a criatividade da criança, em vez de ser condicionada e “domesticada”, é estimulada e desenvolvida. Penso que é um pouco este o comportamento de Lucas em relação ao leitor, no que concerne às personagens: não dá uma folha com um desenho fotocopiado mas um papel em branco. Ele não dá ao leitor todas as características das personagens, um desenho detalhado onde constem todos os seus elementos a traços claramente definidos. Diz acerca das personagens apenas o necessário para que elas sejam personagens, para que elas existam. É um escultor que mexe pouco na argila; dá-lhe a forma imprescindível para que a torne susceptível de outras mãos. Ele deixa deliberadamente a meio o seu trabalho de reconstrução (o nosso, de leitores, seria assim uma re-reconstrução). Em Lucas as personagens estão propositadamente incompletas. Ele coloca uma pista de descolagem por debaixo da imaginação; responsabiliza-a. Entrega-nos um papel em branco. Dá-nos a moldura, mas o retrato somos nós que o escolhemos.

Dou um exemplo concreto. Há dias estava a ler os Actos na parte em que era apresentada a personagem Barnabé (Act 4,36-37). Surgiu-me intuitivamente um rosto que se encaixava perfeitamente nos escassos traços de Barnabé desenhados por Lucas. Era a fotografia que eu queria naquela moldura, naquele lugar da acção. Foi o rosto do sr. Manuel, pai de um menino do meu grupo de catequese, paroquiano muito empenhado, que migrara do Norte há alguns anos, e com quem eu, há poucos dias atrás, tinha tido uma conversa muito enriquecedora sobre a sua actividade pastoral lá na sua aldeia em Barcelos. Achei-o parecido com Barnabé, talvez por colmatar bem o que Lucas não dissera sobre ele… possivelmente por prever que ele teria a mesma atitude de Barnabé naquela circunstância. No fundo, desenhei e pintei o rosto de um cristão de ontem com o rosto de um cristão de hoje. Deste modo, a nossa leitura dos Actos pode ser também o lugar dum intercâmbio entre as personagens, principais ou secundárias, que hoje compõem o elenco da nossa vida, em particular, das nossas comunidades… entre aqueles que têm o rosto lacrado na nossa história de fé e a rede de personagens do início da História de fé. Por outras palavras, os Actos dos Apóstolos continuam hoje, com outros actos e com outros apóstolos. Logo, estabelecer a relação entre os actos e os apóstolos do meu presente concreto e os do passado, (entre a Igreja nascente e a Igreja presente) tentando espreitar a tremenda cumplicidade que os une e também descobrir a novidade ou alteridade que lhes permite este “cara a cara”, constitui um jogo de iluminações recíprocas. Por isso comparar as personagens do livro com as personagens da nossa mundividência, pode ser algo muito sério... E parece até que vem ao encontro daquilo que Lucas queria com os seus silêncios nas descrições das personagens.

Um comentário:

jtm disse...

Li, Cátia, com imenso interesse este teu post. As formas de recepção e de apropriação de uma palavra são inesgotáveis. Esta espécie de anacronismo que se cria entre traços do passado e traços do presente na construção de um personagem é muito significativo. Na aula lembrei o exemplo de um criador que explora muito bem esse recurso: Pier Paolo Pasolini. Obrigado, Cátia. JTM