sexta-feira

São os Actos dos Apóstolos história?

Os grandes equívocos vêm de nós percebermos a noção de história de forma errada.
Qualquer acontecimento produzido na história, para ser contado deve ser interpretado, sem uma interpretação os factos não dizem nada. A história não se escreve em abstracto, mas sob um ponto de vista, por isso é aberta porque um ponto de vista não anula outros possíveis.
Para narrar a história é preciso ter uma tese da mesma, uma compreensão pessoal do acontecimento segundo o conhecimento que se possua dos factos através do testemunho directo, sendo informado por outras testemunhas fiáveis ou investigando alguma documentação. Por outro lado é necessário percebermos que os acontecimentos não são históricos por estar colados à realidade, mas por uma experiência pessoal que permita uma visão de conjunto, desde um olhar distante, afastado.
No caso do livro dos Actos evidentemente não são história no sentido positivista do termo, dos factos brutos, como poderia ser a forma de contar os factos de um apresentador de um telejornal.
O autor dos Actos percebeu que a comunidade cristã precisava de ter uma síntese, uma referencia identitária e sentiu um apelo, uma certeza pessoal de que ele era um narrador qualificado para escreve-la. Lucas fez uma compreensão particular do núcleo fundacional do cristianismo da igreja primitiva, conseguiu escolher e decidir o fio funcional e o fio condutor dos acontecimentos e a forma de tratá-los. Não temos nos Actos uma história pura, e por isso há tanto escrúpulo em considera-los históricos, não encaixam num género fixo: nos actos há poética, há história explicativa, também há história documental, há teologia... mas esta foi a forma mais adequada que o autor encontrou para, a partir de uma visão global, transmitir a sua compreensão dos acontecimentos.
O livro dos Actos é parcial, o que não quer dizer por isso que não seja histórico. O autor escolheu um eixo, seleccionou a partir das fontes que possuía o que lhe interessava comunicar, e defendeu um ponto de vista comunicando-o a partir de um estilo, uma arte própria e umas ferramentas de linguagem particulares.

quinta-feira

Resumo dos Actos dos Apóstolos

Resumir este texto é algo do qual tenho pudor pois ainda não compreendo tudo nem sei se alguma vez chegarei lá. Estou a ler e reler, escrevendo para perceber as entrelinhas desta História.
É muito interessante ver como a história se faz, como as personagens se relacionam umas com as outras e como a narrativa se desenvolve.
Percebe-se que existem duas fazes que se ligam e que têm personagens diferentes. Uma primeira parte (Act. 1-12) fala-nos de da igreja nascente em Jerusalém, e aqui Pedro é apresentado como a personagem preponderante, no que toca à segunda parte dos Actos dos Apóstolos (Act. 13-28) Paulo passa de perseguidor quase insignificante para apóstolo dos gentios. Se na primeira parte toda a história, se passa em Jerusalém, Damasco, Antioquia. A segunda parte passa-se muito para além das redondezas de Jerusalém, Paulo e aqueles que são enviados, fundam comunidades e a partir delas voltam a sair ao encontro de outras, num dinamismo mais ritmado.
Esta viagem de Jerusalém a Roma dá-se numa narrativa intencional, que não deixa de lado a presença do Espírito Santo, que de certa forma torna esta história, uma história em que Deus esteve presente como alguém que a quis.
Por tudo isto, nesta história, até o que se narra como aparentemente mau se torna em bem maior, pois nas entrelinhas desta história tem morada uma sublime beleza.

Continuação de um Santo dia de São Lucas.

quarta-feira

São Lucas

A Igreja apresenta-nos hoje a Festa do Evangelista São Lucas. Segundo uma tradição milenar, São Lucas escreveu o terceiro evangelho e os Actos dos Apóstolos. Ele seria o “médico caríssimo” ao qual se refere São Paulo na carta aos Colossenses (Col. 4, 14). Nos Actos dos Apóstolos aparece como companheiro de São Paulo e a sua vida permanecerá unida ao Apóstolo dos gentios.
O evangelista tem o dom de contar e pintar as cenas evangélicas de maneira a ser conhecido como pintor, principalmente de Nossa Senhora, não com os pincéis mas com a pena. São Lucas teve o mérito de fazer entrar o cristianismo na literatura e na história, mas a sua principal preocupação foi confirmar com os seus escritos os cristãos vindos do paganismo e levar a mensagem de salvação a todos os homens de boa vontade, mostrando que Deus quer salvar a todos. São Lucas soube dosear a história, a narração, a fé e a teologia, mas o que mais lhe interessa é contar o que Jesus “fez e ensinou” (Act. 1,1).
São Lucas sabe seduzir com um estilo fino, penetrante, sóbrio, sem detalhes inúteis, mas sobretudo descobre-se nele uma delicadeza de alma, que, embora haja páginas mais teológicas e dramáticas no Novo Testamento, nenhuma delas nos mostra um Deus, tão amável, compassivo, misericordioso, tão perto de nós, que não temos outra atitude senão tornamo-nos discípulos de Jesus e ser semelhantes a Ele para sermos filhos do Pai que está nos Céus.

Lucas, o médico amado



Para nós comunidade de leitores é dia de festa. Dia de festa porquê? Porque hoje estamos a festejar S.Lucas, o autor dos actos dos apóstolos. Temos a honra de este ano podermos estudá-lo, e mais, mastigá-lo e saboreá-lo na certeza de que ficaremos mais enriquecidos com o seu testemunho.

Aqui deixo uma breve biografia de S.Lucas:

São Lucas nasceu, provavelmente, em Antioquia da Síria. Foi amigo e companheiro de São Paulo, apóstolo, na tarefa da propagação do Evangelho de Jesus Cristo. Toda a sua ciência médica e literária colocou à disposição do grande apóstolo. Entregou-lhe a sua pessoa e seguiu-o por toda a parte. Pertencente a uma família pagã, Lucas converteu-se ao cristianismo. Segundo São Paulo, era médico: “Saúdam-vos, Lucas, o médico amado e Demas (Colossenses” 4,14). Lucas, entretanto, é mais conhecido como aquele que escreveu o terceiro Evangelho. Segundo a tradição, escreveu o seu Evangelho por volta do ano 70. É o mais teólogo dos evangelistas sinópticos (Mateus, Marcos). Ele apresenta - nos uma visão completa do mistério da vida, da morte e da ressurreição de Cristo. Embora escrevesse mais para os gregos do que para os judeus, seu Evangelho dirige-se à todos os homens. Mostra, com isto, que a salvação que Jesus de Nazaré veio trazer dirige-se a todos os homens. É uma mensagem universal: o Filho do homem veio para procurar e salvar o que estava perdido (Lucas 19,10). De acordo com ele, Jesus é o amigo dos pecadores; é o consolador dos que sofrem. A vinda de Jesus é causa de grande alegria. O Evangelho de Lucas propõe-se como regra de vida não somente para a pessoa em si, mas para toda a comunidade. Daí o seu cunho social. Nele se cumpriu a máxima de Jesus: “bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus”.

Desejo à comunidade de leitores um feliz dia.

«O Evangelho do Espírito Santo»

Hoje de manhã na aula de Eclesiologia, despertou-me a atenção quando o professor afirmou que ao livro dos Actos também se pode chamar «Evangelho do Espírito Santo». De facto, devo dizer que quem lhe atribui um dia este “título” tem toda a razão…
Na verdade, podemos constatar que os Actos dos Apóstolos podem denominar-se «o Evangelho do Espírito Santo», porque o Espírito é o seu protagonista. Desde o dia do Pentecostes, quando desceu sobre Maria e os Apóstolos reunidos no Cenáculo, o Espírito Santo guia e sustém o caminho da Igreja, age no coração de cada um para o abrir ao acolhimento do Evangelho, torna eficaz e santificante a presença de Jesus nos sacramentos, dá força aos santos e aos mártires para viverem o amor de Deus e do próximo até ao dom total de si.
Assim, a vida de fraternidade e de comunhão, e o grande impulso missionário da primeira comunidade cristã, descrita nos Actos dos Apóstolos, são um modelo perene para cada tempo…

Actos como História!


A partir da obra de José Mattoso “A escrita da História” e da sua perspectiva acerca da história, podemos revalorizar o sentido histórico do livro dos Actos dos Apóstolos.
Nos Actos não encontramos uma história “pura” mas vemos uma história na sua diversidade (poética, explicativa e documental). Na verdade, é uma história que tem a ver com a identidade e apresenta um carácter fundacional em que a Igreja diz quem é e para tal recorre à fé e à teologia. No entanto, os Actos são um livro parcial pois o cristianismo dos primeiros séculos é muito maior, plural, extenso… Temos nos Actos uma história de começo ou relato de origem, como afirma Pierre Gilbert. Percebemos então, que se trata de uma história em que o cristianismo se diz e compreende a si mesmo!
É importante que olhemos para os lados e coloquemos esta obra a par de tantas outras que fazem parte da literatura antiga e com quem estabeleceu contacto. Com esta comparação é-nos permitido perceber que em Actos estamos perante uma teologia histórica ou teologia da história pois o autor quis fazer história e teologia em paralelo. Assim, a visão histórica do livro aparece integrada numa visão teológica em que Deus é actor e autor do crescimento da Igreja (Act 2, 47; 11, 21.23). A história do mundo surge como uma história de Salvação! Assim, verificamos que Lucas não conta várias histórias, mas na verdade ele faz história! E uma história original…!

terça-feira

Afinal, será uma história o livro dos Actos?

É sem dúvida uma história. Ora, a história que S.Lucas nos conta não procura ser história no verdadeiro sentido da palavra. Certamente, o autor Lucas, orienta-nos para uma história teológica. Pois bem, o livro dos Actos é em si um portador de uma orientação que nos aponta para a teologia. Aliás, o livro dos Actos remete-nos para um grande acontecimento que fez com que a Igreja se movimentasse e se fizesse história na história. Portanto, é com arte, que conta-nos, a história das origens do Cristianismo e o seu desenvolvimento naquela comunidade que se estava a constituir. Podemos concluir que a história não é a comemoração do passado, mas uma formar de compreender o presente no livro aberto.

Fluxo do real!!!

Actos dos Apóstolos – “um fluxo do real” (uma história)

Quando pensamos na palavra historia raras vezes não remetemos ao passado, mas mesmo um passado longínquo. Há uma releitura do passado para encontrar o fundamento do presente, de forma a projectar o futuro com maior certeza e segurança. Há alguns historiadores que pensam que a história é feita só de grandes acontecimentos, há outros que vê um simples nascimento duma criança como motivo nobre para uma grande história.
A história narrada no Livro dos Actos dos Apóstolos é uma história vivida e contemplada, actual e simples. O autor do Livro dos Actos não preocupou em descrever os factos de fio a pavio. Mas o essencial. Ele falou do essencial, Jesus de Nazaré e, sobretudo, da vida dos primeiros seguidores de Cristo. O autor desta narração faz uma representação mental espantosa, dá ao leitor um fio condutor, apesar da imensidade do real, para não ficar perdido. Há um fluxo do real em toda narração. Digamos que a vida dos Apóstolos é reconstruída poeticamente.
Lucas, na sua narrativa foge muito do esquema tradicional. E, é isso que torna a narrativa rica. Porque Jesus não passava de um marginal, um mendigo e, no entanto, Lucas escreveu sobre Ele. Portanto, Lucas vai mais além das directrizes do método da narração historiográfica de então. Lucas não sabe tudo sobre o que se passou com Cristo e nem quer saber tudo, mas a partir daquilo que conseguiu captar, ele fixa, contempla, medita e relata.

Ainda sobre…

Acho interessante partilhar com a restante comunidade de leitores, ainda sobre o pequeno debate (chamemos-lhe assim) da aula de ontem em torno do meu comentário ao texto do Ricardo, uma breve reflexão que poderá esclarecer alguns aspectos.

A psico-pedagogia actual desaconselha, no campo das técnicas de animação ou ensino de crianças, uma prática muito recorrente: trata-se do acto de se dar um papel com um desenho ou imagem para as crianças pintarem. Recomenda, ao invés, que os educadores simplesmente forneçam à criança uma folha em branco, para que nela possam desenhar e pintar livremente. Argumentam que desta forma a capacidade imaginativa e a criatividade da criança, em vez de ser condicionada e “domesticada”, é estimulada e desenvolvida. Penso que é um pouco este o comportamento de Lucas em relação ao leitor, no que concerne às personagens: não dá uma folha com um desenho fotocopiado mas um papel em branco. Ele não dá ao leitor todas as características das personagens, um desenho detalhado onde constem todos os seus elementos a traços claramente definidos. Diz acerca das personagens apenas o necessário para que elas sejam personagens, para que elas existam. É um escultor que mexe pouco na argila; dá-lhe a forma imprescindível para que a torne susceptível de outras mãos. Ele deixa deliberadamente a meio o seu trabalho de reconstrução (o nosso, de leitores, seria assim uma re-reconstrução). Em Lucas as personagens estão propositadamente incompletas. Ele coloca uma pista de descolagem por debaixo da imaginação; responsabiliza-a. Entrega-nos um papel em branco. Dá-nos a moldura, mas o retrato somos nós que o escolhemos.

Dou um exemplo concreto. Há dias estava a ler os Actos na parte em que era apresentada a personagem Barnabé (Act 4,36-37). Surgiu-me intuitivamente um rosto que se encaixava perfeitamente nos escassos traços de Barnabé desenhados por Lucas. Era a fotografia que eu queria naquela moldura, naquele lugar da acção. Foi o rosto do sr. Manuel, pai de um menino do meu grupo de catequese, paroquiano muito empenhado, que migrara do Norte há alguns anos, e com quem eu, há poucos dias atrás, tinha tido uma conversa muito enriquecedora sobre a sua actividade pastoral lá na sua aldeia em Barcelos. Achei-o parecido com Barnabé, talvez por colmatar bem o que Lucas não dissera sobre ele… possivelmente por prever que ele teria a mesma atitude de Barnabé naquela circunstância. No fundo, desenhei e pintei o rosto de um cristão de ontem com o rosto de um cristão de hoje. Deste modo, a nossa leitura dos Actos pode ser também o lugar dum intercâmbio entre as personagens, principais ou secundárias, que hoje compõem o elenco da nossa vida, em particular, das nossas comunidades… entre aqueles que têm o rosto lacrado na nossa história de fé e a rede de personagens do início da História de fé. Por outras palavras, os Actos dos Apóstolos continuam hoje, com outros actos e com outros apóstolos. Logo, estabelecer a relação entre os actos e os apóstolos do meu presente concreto e os do passado, (entre a Igreja nascente e a Igreja presente) tentando espreitar a tremenda cumplicidade que os une e também descobrir a novidade ou alteridade que lhes permite este “cara a cara”, constitui um jogo de iluminações recíprocas. Por isso comparar as personagens do livro com as personagens da nossa mundividência, pode ser algo muito sério... E parece até que vem ao encontro daquilo que Lucas queria com os seus silêncios nas descrições das personagens.

segunda-feira

Casa - Lugar da constituição do Cristianismo

Na nossa aula de hoje fiquei intrigado em algo que nunca tinha pensado ou mesmo dado qualquer importância: a CASA (oikós). Fiquei a pensar e vim procurar na bíblia qual seria a sua frequência. Verifiquei que a palavra "casa" aparece 39 vezes em todo o livro dos Actos. Mais. 135 vezes nos sinópticos, sendo 46 em Mateus, 33 em Marcos e 56 e Lucas.
Achei muito interessante esta grande frequência e fiquei a pensar no que tinhamos falámos na nossa aula sobre a importância que tem a "casa" no NT. É Jesus que vai de casa em casa e, ao entrar na casa daquele que o convida, entra na sua "intimidade". Nos Actos encontramos também Pedro e Paulo que também frequentam a casa de uns e de outros. É muito interessante perceber que a "casa" é lugar da realização e da constituição do Cristianismo. Na casa, à mesa estabelece-se relação, dá-se o encontro com o outro, pois entramos no seu espaço. Assim, a casa não é apenas um espaço físico, pois este com o tempo desaparece, mas é um espaço que vai muito mais além de tudo isto. É um lugar de construção.

Actos dos Apóstolos, história?

É o livro dos Actos dos Apóstolos história? Sim, é história. Mas a história que nos conta não procura ser história de um ponto de vista histórico, mas, o que Lucas pretende é relatar uma história de um ponto de vista telógico.
Procura seguir um fio condutor em toda a sua obra que se encontra enraízada na ressurreição de Cristo. Este é o grande acontecimento e é a partir dele que a Igreja se mobiliza e nisto faz-se história. Lucas não inventa um novo género para relatar os factos, o modo como ele o faz é que é original.
Como qualquer historiador, Lucas, também teólogo, procura relatar os factos com objectividade e vivacidade. Com arte, conta-nos, e bem, a história das origens do Cristianismo e o seu desenvolvimento, assim como as dificuldades e tribulações vividas daquela pequena comunidade que se estava a formar e a expandir.
É um história que não procura apenas relatar os factos acontecidos. Nela encontramos uma pretenção muito maior. Pela forma como está escrita, Lucas quer fazer-nos participantes dessa mesma história que tem a ressurreição de Cristo como acontecimento central e motor para toda a história e que vem até aos dias de hoje, podemos ver isto no facto do livro ficar em aberto.

domingo

Podia ter sido Estêvinho mas foi Estêvão

[Act 6,5; 6,8; 6,9; 7,54; 7,59; 8,2; 11,19; 22,20]
[Act 6,1 – 8,3]

Estêvão andava sempre com o Espírito e entregou-o na hora certa.
Nas frases em que o autor de Actos dos Apóstolos se refere a Estêvão relaciona-o sempre com o Espírito [Santo]. Escolhido para servir “às mesas” com outros seis diáconos, Estêvão distingue-se dos seus pares – segundo o narrador – por ser um homem “cheio de fé e do Espírito Santo”, por fazer “extraordinários milagres e prodígios entre o povo”, por falar “com sabedoria e Espírito”, por encarar a sua condenação à morte como intimidade com Cristo por interceder pelos seus assassinos.
Se, para muitos autores, o protomártir da Igreja é descrito e apresentado em estilo epopeico, parece-nos razoável, dado o seu significado. Estêvão personifica a seita tão nova e tão prodigiosa que os cristãos representavam, a fé consciente e coerente a que são chamados todos os seguidores de Jesus Cristo e, por último, o início do “risco da jangada de pedra”: a génese da demarcação do judaísmo e da comunidade de Jerusalém.

Interpretação do texto

Neste Post gostava de deixar algo, que temos ouvido nas últimas aulas tanto dos Actos como dos Sinópticos. Não há história sem a mediação de uma interpretação dada pelo historiador, em que toda a história é um relato que é contado a partir de um ponto de vista.
O texto escrito e a sua relação com o destinatário resulta profundamente alterada. Enquanto que no diálogo o outro é um tu que me escuta, na escrita o destinatário é qualquer um que saiba ler, diz Ricoeur. Desta forma para a hermenêutica ricoeuriana “interessa mais o que diz o texto do que o que diz o seu autor”. Assim, graças à escrita, a “coisa do texto” pode fazer explodir o mundo do autor, um mundo cheio de história.
Por outro lado a mediação pelos textos é enriquecedora, uma vez que a experiência do autor tornada texto se independentiza, torna-se autónoma da intencionalidade do autor, “o que o texto significa já não coincide com aquilo que o autor quis dizer”.
Significação verbal, quer dizer, textual, e significação mental, quer dizer, psicológica, têm, doravante, destinos diferentes”[1], ou seja, o fenómeno da escrita dá ao texto, entendido como uma obra, uma autonomia que implica ao mesmo tempo uma distância com respeito tanto à intenção do autor, como às condições da sua produção. Por outro lado, a autonomia do texto faz possível a sua recontextualização em novas situações cada vez que se realiza uma nova leitura. Desta forma, o texto é uma obra em aberto, pois é actualizado por diferentes interpretações, diz Ricoeur “Compreender-se é compreender-se em face do texto e receber dele as condições de um si diferente do eu que brota do texto”[2].
Da mesma forma que se independentiza do contexto psico-sócio-cultural do autor “o texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico como psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa situação nova: é o que faz o acto de ler”[3] e também se independentiza do conjunto de receptores aos quais se destinava. Para Ricoeur a autonomia do texto tem consequências hermenêuticas importantes, nomeadamente uma maior aproximação entre objectivação e interpretação.
O texto emancipa-se da situação da sua produção, promovendo novas possibilidades de interpretação, de uma construção que é paralelamente construção do sujeito.
Para Ricoeur é na interpretação dos textos que a pessoa se encontra consigo mesma. A pessoa chega à compreensão de si mesma através da compreensão dos textos “a leitura duma obra literária é ao mesmo tempo uma leitura de si enquanto descoberta de si: ler é também, e sobretudo, ler-se, e o texto é a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos”[4].
Finalmente, o texto dirige-se a quem quer que saiba ler, criando o seu próprio auditório, escapando aos limites do face a face.
Ricoeur toma o pensar filosófico como um processo aberto ao não-filosófico, desta forma ele desenvolve um triplo caminho em que a filosofia, a literatura e a teologia podem caminhar juntas, mantendo as suas diferenças específicas, mas, ao mesmo tempo, possibilitando um processo de maior penetração no sentido da realidade.

Anabela Neves Rodrigues
[1] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 118.
[2] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 42-43.
[3] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 119.
[4] HENRIQUES, Fernanda – Filosofia e Literatura. Um percurso hermenêutico com Paul Ricoeur, p. 16.
Actos como uma visão historiográfica poética


Toda a história tem um ponto de vista, pois abarca consigo toda a envolvência política, social, cultural e económica de quem a traz a lume e, como tal, é uma reconstrução (sempre situada e incompleta) de uma situação, onde se procura uma linha unitária que ultrapassa a mera descrição. Principiando pela procura de vestígios do itinerário do homem, a história nunca é só descrição, pois não consegue abranger na totalidade o real, mas muito mais exercício de contemplação, uma vez que tudo tem densidade história. Procurando ter uma visão de conjunto, a síntese histórica, por ser contemplação, não foge ao domínio racional, mas antes o completa. Assim, em base na hipótese, reconstrói uma representação mental do passado, mantendo uma conexão entre o discurso e o objecto, afirmando, desta forma, a existência de uma ordem no mundo. Assim história é uma arte que procura comunicar com rigor uma hipotética reconstrução do passado.
E é esse também o objectivo dos Actos dos Apóstolos, pois Lucas não se baseia só nos “bruta facta”, uma vez que o seu alcance é selar o passado em relatos fundadores, onde o povo, ao longo das gerações, revê a sua identidade. Sendo uma visão historiográfica poética ou história em sentido forte, como afirma Ricoeur, Actos deixa-se também permeabilizar pelos procedimentos literários onde se faz sentir a desconexão entre discurso e objecto, onde se instala, por vezes, a desordem. Além disso, inaugura-se uma novidade literária relativamente à literatura greco-romana não só porque se preocupa com o real, não se deixando guiar pela fantasia heróica da mitologia e dos heróis gregos, como também pinta a narrativa com detalhes documentais, não os deixando, como era apanágio do mundo helénico, somente numa secção para esse efeito; além disso, Actos ancora o seu relato na história civil. Outra característica está no facto de Lucas retratar a vida dos discípulos de Jesus, não se deixando meramente estancar pela simples descrição, envolvendo as personagens de uma roupagem literária expressiva, de modo suscitar o interesse do leitor; contudo, o plano histórico de actos também se faz presente, se bem que não de modo absoluto, pois não se trata de um livro histórico, mas de uma visão historiográfica e literária poética.
Assim, tal como a historiografia na Grécia antiga primava pela componente educativa, assim também em Actos temos uma atitude paidêutica, mostrando-se ao longo da narrativa a evolução, nos seus altos e baixos, da cristogénese. Inverte-se somente duas das regras helénicas de fazer história, a saber, a não escolha de um motivo nobre (para os gregos), pois os cristãos eram considerados uma seita perseguida (a quinta linha do interesse comum); e, também, a regra da imparcialidade, uma vez que Lucas era um apologeta do cristianismo.