terça-feira

SEGUNDA CARTA DE PEDRO - PSICANÁLISE E TEOLOGIA


CONCEITO DE PESSOA – II

“Nascer é ambas as coisas um começo e um fim: o clímax de tudo o que aconteceu desde o momento da fertilização através de nove meses de crescimento no útero.” (1) No útero são principalmente os sentimentos belos, bons, agradáveis, que nos permitem estar vivos. Mas, nascer é transitar da agradável vida intra-uterina para a menos agradável vida extra-uterina. São os sentimentos desconfortáveis, inadaptados, portadores de sofrimento, que nos dão a possibilidade de aprofundar a nossa existência e de nos abrir ao que nela há de mais decisivo. Nascer é o desconforto de uma separação. Nascer é o sofrimento primevo do paroikos (palavra grega usada na Primeira Carta de Pedro).

A transição do oikos uterino para fora é uma dor apaziguada pelo contacto morno com o corpo da mãe. Ora, o aleitamento alimenta física e emocionalmente. “ A mãe suficientemente boa alimenta a o[m]nipotência do lactente e até certo ponto vê sentido nisso. E o faz repetidamente. Um self verdadeiro [ou por outras palavras: sujeito] começa a ter vida, através da força dada ao fraco ego [eu individual] do lactente pela complementação pela mãe das expressões da o[m]nipotência do lactente.” (2)

Deus tem rosto materno. Maternalmente, Deus dá leite espiritual. O Deus de Jesus Cristo é o da verdade cristã, a qual é apresentada na Segunda Carta de Pedro.

Escrita contra os falsos doutores e contra a gnose, a Segunda Carta de Pedro tem como eixo a verdade, em termos teológicos, e a verdade do self, em termos da psicanálise. De facto, a oposição aos falsos doutores e à gnose constitui, segundo a nossa leitura psicanalítica, uma oposição ao falso self.

Mas dentro de nós mesmos ambos existem falso e verdadeiro self, pois assumimos continuamente a tarefa de unir contrários, elegendo a verdade.

A verdade é do inconsciente e é de Deus, ou seja, é daquele que está mergulhado nas águas profundas do eu. Aceder ao inconsciente é conhecer. E é de conhecimento que a Segunda Carta a Pedro fala (2 Pe 1,3-21), terminando deste modo: “antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno.” (2 Pe 3,18).

Em termos psicanalíticos, pessoa é, ao mesmo tempo, inconsciente e consciente. (3) Ora, o potencial inato e congénito da pessoa manifesta-se, na sua vida, sem que todas as possibilidades pessoais se realizem. A essa manifestação chama-se, na análise junguiana, individuação.

“A individuação é mais busca que alvo, mais dire[c]ção a seguir do que local de descanso da caminhada.” (4) Tornar-se cristão é uma caminhada no sentido de se individualizar, sendo capaz de testemunho e de martírio. Tornar-se cristão é relacionar-se não tanto com os enquadramentos históricos mas com a matriz trans-histórica do Cristianismo.

No século II, na Carta a Diogneto escreveu-se que os cristãos são a alma do mundo, “sal da terra”. Ser cristão é um ser pessoa de outro tipo. Do tipo de percorrer caminhos de individuação cristã e de se deixar alcançar pela verdade de Deus-mãe, que complementa a verdade do self / sujeito.
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(1) PAPALIA-OLDS, Human Development, McGRAW-HILL,INC,1995, p 81.
(2) WINNICOTT, D. W., O ambiente e os processos de maturação, Artes Médicas, Porto Alegre, 1982, p 133.
(3) Há autores que consideram o aparelho psíquico subdividido em: subconsciente, inconsciente e consciente.
(4) HALL, J. A., A experiência junguiana – análise e individuação, Cultrix, São Paulo, p 62.
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HELENA FRANCO
2007-12-19

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