domingo

Podia ter sido Estêvinho mas foi Estêvão

[Act 6,5; 6,8; 6,9; 7,54; 7,59; 8,2; 11,19; 22,20]
[Act 6,1 – 8,3]

Estêvão andava sempre com o Espírito e entregou-o na hora certa.
Nas frases em que o autor de Actos dos Apóstolos se refere a Estêvão relaciona-o sempre com o Espírito [Santo]. Escolhido para servir “às mesas” com outros seis diáconos, Estêvão distingue-se dos seus pares – segundo o narrador – por ser um homem “cheio de fé e do Espírito Santo”, por fazer “extraordinários milagres e prodígios entre o povo”, por falar “com sabedoria e Espírito”, por encarar a sua condenação à morte como intimidade com Cristo por interceder pelos seus assassinos.
Se, para muitos autores, o protomártir da Igreja é descrito e apresentado em estilo epopeico, parece-nos razoável, dado o seu significado. Estêvão personifica a seita tão nova e tão prodigiosa que os cristãos representavam, a fé consciente e coerente a que são chamados todos os seguidores de Jesus Cristo e, por último, o início do “risco da jangada de pedra”: a génese da demarcação do judaísmo e da comunidade de Jerusalém.

Interpretação do texto

Neste Post gostava de deixar algo, que temos ouvido nas últimas aulas tanto dos Actos como dos Sinópticos. Não há história sem a mediação de uma interpretação dada pelo historiador, em que toda a história é um relato que é contado a partir de um ponto de vista.
O texto escrito e a sua relação com o destinatário resulta profundamente alterada. Enquanto que no diálogo o outro é um tu que me escuta, na escrita o destinatário é qualquer um que saiba ler, diz Ricoeur. Desta forma para a hermenêutica ricoeuriana “interessa mais o que diz o texto do que o que diz o seu autor”. Assim, graças à escrita, a “coisa do texto” pode fazer explodir o mundo do autor, um mundo cheio de história.
Por outro lado a mediação pelos textos é enriquecedora, uma vez que a experiência do autor tornada texto se independentiza, torna-se autónoma da intencionalidade do autor, “o que o texto significa já não coincide com aquilo que o autor quis dizer”.
Significação verbal, quer dizer, textual, e significação mental, quer dizer, psicológica, têm, doravante, destinos diferentes”[1], ou seja, o fenómeno da escrita dá ao texto, entendido como uma obra, uma autonomia que implica ao mesmo tempo uma distância com respeito tanto à intenção do autor, como às condições da sua produção. Por outro lado, a autonomia do texto faz possível a sua recontextualização em novas situações cada vez que se realiza uma nova leitura. Desta forma, o texto é uma obra em aberto, pois é actualizado por diferentes interpretações, diz Ricoeur “Compreender-se é compreender-se em face do texto e receber dele as condições de um si diferente do eu que brota do texto”[2].
Da mesma forma que se independentiza do contexto psico-sócio-cultural do autor “o texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico como psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa situação nova: é o que faz o acto de ler”[3] e também se independentiza do conjunto de receptores aos quais se destinava. Para Ricoeur a autonomia do texto tem consequências hermenêuticas importantes, nomeadamente uma maior aproximação entre objectivação e interpretação.
O texto emancipa-se da situação da sua produção, promovendo novas possibilidades de interpretação, de uma construção que é paralelamente construção do sujeito.
Para Ricoeur é na interpretação dos textos que a pessoa se encontra consigo mesma. A pessoa chega à compreensão de si mesma através da compreensão dos textos “a leitura duma obra literária é ao mesmo tempo uma leitura de si enquanto descoberta de si: ler é também, e sobretudo, ler-se, e o texto é a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos”[4].
Finalmente, o texto dirige-se a quem quer que saiba ler, criando o seu próprio auditório, escapando aos limites do face a face.
Ricoeur toma o pensar filosófico como um processo aberto ao não-filosófico, desta forma ele desenvolve um triplo caminho em que a filosofia, a literatura e a teologia podem caminhar juntas, mantendo as suas diferenças específicas, mas, ao mesmo tempo, possibilitando um processo de maior penetração no sentido da realidade.

Anabela Neves Rodrigues
[1] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 118.
[2] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 42-43.
[3] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 119.
[4] HENRIQUES, Fernanda – Filosofia e Literatura. Um percurso hermenêutico com Paul Ricoeur, p. 16.
Actos como uma visão historiográfica poética


Toda a história tem um ponto de vista, pois abarca consigo toda a envolvência política, social, cultural e económica de quem a traz a lume e, como tal, é uma reconstrução (sempre situada e incompleta) de uma situação, onde se procura uma linha unitária que ultrapassa a mera descrição. Principiando pela procura de vestígios do itinerário do homem, a história nunca é só descrição, pois não consegue abranger na totalidade o real, mas muito mais exercício de contemplação, uma vez que tudo tem densidade história. Procurando ter uma visão de conjunto, a síntese histórica, por ser contemplação, não foge ao domínio racional, mas antes o completa. Assim, em base na hipótese, reconstrói uma representação mental do passado, mantendo uma conexão entre o discurso e o objecto, afirmando, desta forma, a existência de uma ordem no mundo. Assim história é uma arte que procura comunicar com rigor uma hipotética reconstrução do passado.
E é esse também o objectivo dos Actos dos Apóstolos, pois Lucas não se baseia só nos “bruta facta”, uma vez que o seu alcance é selar o passado em relatos fundadores, onde o povo, ao longo das gerações, revê a sua identidade. Sendo uma visão historiográfica poética ou história em sentido forte, como afirma Ricoeur, Actos deixa-se também permeabilizar pelos procedimentos literários onde se faz sentir a desconexão entre discurso e objecto, onde se instala, por vezes, a desordem. Além disso, inaugura-se uma novidade literária relativamente à literatura greco-romana não só porque se preocupa com o real, não se deixando guiar pela fantasia heróica da mitologia e dos heróis gregos, como também pinta a narrativa com detalhes documentais, não os deixando, como era apanágio do mundo helénico, somente numa secção para esse efeito; além disso, Actos ancora o seu relato na história civil. Outra característica está no facto de Lucas retratar a vida dos discípulos de Jesus, não se deixando meramente estancar pela simples descrição, envolvendo as personagens de uma roupagem literária expressiva, de modo suscitar o interesse do leitor; contudo, o plano histórico de actos também se faz presente, se bem que não de modo absoluto, pois não se trata de um livro histórico, mas de uma visão historiográfica e literária poética.
Assim, tal como a historiografia na Grécia antiga primava pela componente educativa, assim também em Actos temos uma atitude paidêutica, mostrando-se ao longo da narrativa a evolução, nos seus altos e baixos, da cristogénese. Inverte-se somente duas das regras helénicas de fazer história, a saber, a não escolha de um motivo nobre (para os gregos), pois os cristãos eram considerados uma seita perseguida (a quinta linha do interesse comum); e, também, a regra da imparcialidade, uma vez que Lucas era um apologeta do cristianismo.

sábado

ACTOS DOS APÓSTOLOS - OUTRA PERSONAGEM

Um post é sempre um corredor de palavras ao qual o prazer da descoberta nos traz.

O poeta austríaco Rainer Maria Rilke cria, em torno de enigmáticos anjos, uma poesia em busca da salvação.

“Os anjos são de Rilke” dirá Manuel Alegre. E, na verdade, o filme “Asas do Desejo” rodado em 1987 do cineasta alemão Wim Wenders terá sido inspirado nas “Elegias de Duíno” de Rilke.

Em “Asas do Desejo”, o anjo Damiel (Bruno Ganz) quando se torna humano por amor a uma mulher diz: “Eu agora sei o que nenhum anjo sabe”.

“Ein jeder Engel ist schrecklich”, isto é, “Todo o anjo é terrível” como diz Rilke, na nona Elegia, pois não é possível separar a beleza do terror nem a vida da morte. Mas, a nossa condição humana é de ambivalência. É nos anjos que há indissolúvel unidade.

No entanto, os anjos de Rilke não são cristãos porque a Palavra não é a sua substância.

O Anjo do Senhor - personagem do corpo literário bíblico e, de modo mais preciso, dos Actos dos Apóstolos – é um ser atravessado pela Palavra (Logos criador). O Senhor Jesus, por amor, assume a condição humana e o Anjo torna-se tão próximo dos Homens quanto de Deus. A teofania, ou seja, a autorevelação de Deus tem, certamente, as formas de um Anjo.

Podemos notar que Lucas, o autor dos Actos dos Apóstolos, situa o Anjo do Senhor no ciclo petrino. Este facto há-de estar, na sua essência, profundamente ligado à Confissão de Pedro, nos Evangelhos Sinópticos (Mt 16,16: Mc 8,29; Lc 9,20).

Para terminar, os leitores da nossa comunidade poderão tomar contacto com uma angeologia que, em nosso entender, é cristológica, nestas secções bíblicas dos Actos dos Apóstolos:

- 1,6-11
- 5,18-21
- 7,30-35
- 8,26-40
- 10,1-11,18
- 12,6-25


BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL: CARRELL, P. R., Jesus and the angels, Angeology and the christology of the Apocalypse of John, Cambridge: Universitary Press, 1997; NUNES Jr, A., O Invísivel como salvação própria in
http://www.cronopros.com.br/

HELENA FRANCO
2007-10-13

sexta-feira

Actos dos Apóstolos: História de histórias

Achei interessante a relação que a Helena fez entre História e Teologia (passo a citá-la): “História e Teologia estão, nos Actos dos Apóstolos, intimamente ligadas pela palavra e pelo silêncio que a fecunda”. Era um comportamento já veterotestamentário usar a História como “aparelho vocal” da Teologia. Esta não era exprimida por raciocínios secos e ideias sem carne mas pelas histórias da História. Desta forma, a História era lida teologicamente e vice-versa. Os Actos são assim construídos neste dinamismo de cumplicidade. A Teologia não é transmitida a soro ou com uma sonda, é comida numa rede de sabores feita pelas personagens nos traços das suas personalidades, pelos solavancos das acções, pelas cores e cheiros dos cenários, etc. No caso de Lucas, o concreto da História, o carácter documental do texto, confere um paladar verídico ao que é contado. Ele sabia que tanto a fantasia pura como a Historiografia crua ajudariam a matar o mistério, que as histórias foram feitas para vivificar e tornar talvez ainda mais misterioso.

Lucas elabora um percurso do vestígio ao símbolo. Os acontecimentos são como um conjunto de ingredientes expostos sobre a mesa, mas que serão “cozinhados”, num dinamismo interpretativo. A partir dessa actividade de leitura dos factos, de busca de nexos entre eles em vista a serem articulados e harmonizados num sentido ou projecto teológico, eles passam de factos que aconteceram para elementos capazes de projectarem o homem para outra dimensão (ou seja, constituem-se como símbolos). Os acontecimentos assumem-se como catapultas para a sua própria dimensão transcendente e, consequentemente, para a dimensão transcendente dos acontecimentos de hoje e de amanhã. Esta “transcendência” não seria revelada se eles fossem factos isolados desintegrados dum horizonte de sentido. Também não seria revelada se não fossem reconstruídos por dispositivos de ficção, na medida em que é inegável na História a sua intrínseca dimensão literária (porque não sendo dita em histórias não é História). Posso concluir dizendo, completando a afirmação da Helena, que é a História, assim entendida como realidade transformada pela palavra e transformante, que liga os acontecimentos à Teologia.

Os Actos como história

Os Actos dos Apóstolos contam as histórias de personagens, viagens e acontecimentos que marcaram não só as vidas de todas aquelas pessoas mas também a história da humanidade. Tal como um avô conta ao seu neto a história da primeira vez que apanhou um peixe, as histórias dos Actos inspiram, evocam emoções e mudam a nossa visão do mundo. A primeira cena da Ascenção, por exemplo, em que Jesus parte e deixa uma missão aos apóstolos, faz-nos lembrar os filmes em que morre alguém e deixa um último pedido. Na obra estão descritos momentos de coragem e momentos em que as personagens brilham. Fazem-me lembrar dos poucos momentos da minha vida em que tive uma coragem especial e que são histórias que gostaria de contar aos meus netos.
As histórias sobre a coragem não nos dão só exemplos de uma instância corajosa, mas contam-nos um pouco sobre a coragem em si. De tal modo, quando alguém nos conta uma história sobre si aprendemos também quem eles são. Quando a minha mãe me conta uma história acerca dela na escola primária, não só a vejo naquela altura, pequena e com um laço no cabelo, como também a vejo hoje tal como ela é. A história em geral também conta ao mesmo tempo o passado e o presente, pois não pertence ao passado mas a uma unidade de sentido. Como diz José Mattoso, “Quero com isto dizer que só me atrai, no passado, aquilo que me permite compreender e viver o presente” (p. 16). Os Actos do Apóstlos são um exemplo perfeito deste sentido de história. Contam-nos um passado ao qual temos o prazer de pertencer e reflectem as nossas vidas, almas e aspirações.

Personagem: Filipe de Cesareia

O personagem do helenista Filipe surge-nos em diferentes micro-relatos, movendo-se em diversos tempos, espaços físicos e sociais.
No micro-relato da escolha dos sete que iriam auxiliar os Apóstolos, Filipe, tal como os outros seis, é apresentado como homem de boa reputação, cheio do Espírito Santo e de sabedoria (cf.l Act 6,3). Feito esta caracterização directa, o leitor sente-se, de imediato, identificado com o personagem, estabelecendo com ele uma relação de empatia.
Após a dispersão que se seguiu ao martírio de Estêvão, vamos reencontrá-lo em Samaria pregando a Boa Nova e fazendo muitas conversões. Entre os muitos que foram por ele baptizados, está Simão - um mágico que de oponente passa a adjuvante do nosso personagem (cf. Act 8,9-13).
O nó da tessitura da narrativa surge sem intenção e o encaixe da conversão de Simão mostra força com que o Espírito Santo actuava através de Filipe.
Em Act 8,26-38, é-nos relatado o encontro com o eunuco etíope na estrada que vai para Garça. Filipe, depois de lhe explicar as Escrituras, anuncia-lhe a Boa Nova com tal sabedoria que aquele pede o baptismo.
Prosseguindo, passa por Azoto e chega a Cesareia (cf. Act 8,40), onde terá, mais tarde, um encontro com Paulo que se dirigia para Jerusalém (Act 21,8).
Este encontro reúne dois grandes evangelizadores dos Gentios.
O nosso personagem, caracterizado sob vários aspectos, vai evoluindo, daí que se trate de um personagem "redondo".