terça-feira

Proposta de uma Teologia da fé

A Segunda Carta de Pedro foi escrita tentando proteger a comunidade de um grupo de falsos mestres que pervertiam a verdade da fé chegando mesmo a “negar o Senhor”, e traíam-na com os seus comportamentos hedonistas e imorais, constituindo-se assim um desvio ao caminho recto. Ao que tudo indica eram um grupo gnostizante, para o qual a fé não implicava comportamentos com ela coincidentes. Em reacção a este entendimento da fé (que era vista como gnosis), o autor esboça uma interessante teologia da fé, tomando-a não como uma realidade isolada mas como complexo de várias atitudes interiores:

Por este motivo é que, da vossa parte, deveis pôr todo o empenho em juntar à vossa fé a virtude; à virtude o conhecimento; ao conhecimento a temperança; à temperança a paciência; à paciência a piedade; à piedade o amor aos irmãos; e ao amor aos irmãos a caridade.

2 Pe 1,5-7


Fé (é já a virtude; não o objecto desta) – virtude (como “energia moral”) – conhecimento (não é apenas especulativo) – temperança (domínio de si) – paciência (provavelmente, refere-se à espera da segunda vinda) – piedade (capacidade de permanecer dentro da ordem estabelecida por Deus, ou seja, contra as heresias e actos imorais) – amor aos irmãos (amor referido à comunidade eclesial) – caridade (parecido com o anterior, mas com um sentido universal)*

Esta lista de virtudes não é original no corpus do Novo Testamento, ocorrendo noutros livros com outras “virtudes” e com outra forma:

Por seu lado, é este o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra tais coisas não há lei.

Gálatas 5,22-23

pela pureza e pela ciência,pela magnanimidade e pela bondade, pelo Espírito Santoe pelo amor sem fingimento, pela palavra da verdadee pelo poder de Deus, pelas armas ofensivase defensivas da justiça

2 Cor 6,6-7

Mas tu, ó homem de Deus, foge dessas coisas. Procura antes a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança, a mansidão.

1 Tim 6,11

'Conheço as tuas obras, a tua caridade, a tua fé, a tua dedicação, a tua constância e as tuas últimas obras, mais numerosas que ao princípio.

Ap 2,19

Contudo, tem traços distintivos: ao contrário delas, que são simples enumerações, exprime uma dinâmica de inter-relação entre as várias virtudes, não as sectoriza, pois incluem-se mutuamente e uma leva a outra, como se constituíssem uma cadeia e como se propusesse um percurso. Cada elemento está incompleto sem os outro e por isso conduz para ele. Deste modo, a fé é um todo, é uma rede constituída por várias facções, é um puzzle. É como um diamante com as suas várias faces; olhando para uma delas veremos o diamante todo. É como uma árvore que só é árvore na medida em que é composta destes ramos e na medida em que dá frutos - “a gnosis é um momento do processo da fé que leva ao amor, mas (…) há que chegar aos frutos”**. Se quiséssemos condensar, diríamos que, em suma, fé é conhecimento, virtude e amor. Ela é este todo unitário, uma realidade tripla, uma atitude total. Esta carta alarga a fé à dimensão racional (conhecimento), comportamental, prática e relacional (virtude e amor), e desta forma responsabiliza-a. Com ela se percebe que não se pode ser um grande crente se não se for um grande homem, nem um homem de fé se não se for um homem de acção. Faz da fé projecto de se ser humano, homem completo, contestando aqueles que a entendem como cúmplice de um hipotecar da razão, do coração, da consciência e da acção.

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* Cf. FRANCO, Ricardo – Cartas de San Pedro (traducción y comentário). In In LEAL (dir.) – A Sagrada Escritura: texto e comentário. III. BAC : Madrid, 1967. p. 318-319.
** ALEGRE, Xavier, TUÑI, Josep-Oriol – Escritos joánicos y cartas católicas. Estella – Editorial Verbo Divino, 1998. p. 366.

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