quarta-feira

Os Actos e a contemplação da história

Se a nossa definição de história se resume a um relatar factual dos acontecimentos do passado, então os Actos dos Apóstolos não são História. Contudo, se alargamos os nossos horizontes conceptuais para um algo que difere, para um algo mais, então, numa análise sincera, encontraremos, nesta obra, traços de verdadeira inspiração histórica, uma história mais profunda do que a mera sucessão cronológica de acontecimentos seleccionados pela tempo, sociedade, culturas, tradições e pessoas, pois na verdade, por muito que seja o estudo, nunca alguém conseguirá abarcar a total profundidade de um mero acontecimento.
Ao longo da tradição exegética, foram sendo apresentadas várias hipóteses para a explicação do livro dos Actos dos Apóstolos, entre elas destacam-se seis: a) Continuação do Evangelho; b) Apologia pró Ecclesia; c) Monografia histórica; d) Romance histórico; e) História Apologética; f) “História do começo” ou “Relato de Origem”. É neste último tipo que se inserem os Actos.
Nos nossos dias, ganha força uma nova visão da teoria histórica esta é a História em sentido forte ou História poética, esta, praticando uma visão contemplativa da realidade, relê o passado, em relatos fundadores, permitindo aos grupos construir as suas histórias e identidades. O reconhecimento da dimensão poética é fundamental, porque, através do exercício contemplativo – “observação atenta do real, da «espantosa realidade das coisas» - liberta o historiador em relação ao símbolo. A teologia é intrínseca a uma visão historeográfica poética, porque visa contemplar a realidade, não no emaranhado dos factos, mas alcançando o fio condutor da história, a chave hermenêutica, aquilo que dá e desvenda o significado da história.

Timóteo de Listra (vale mais tarde que nunca)

Timóteo de Listra

Paulo está nas cidades de Derbe e Listra em Actos 16. Em listra encontramos um quadro familiar e de amizade em volta de Timóteo. Ele é um discípulo de Listra. Os pais de Timóteo não são apresentados pelo nome mas são referidos pela sua origem religiosa e cultural; a mãe judia crente e o pai grego. Timóteo nasce num contexto multicultural e apesar disto é cristão. Todos os irmãos de Listra e de Icónio diziam bem de Timóteo.

A circuncisão de Timóteo dá-se “por causa dos judeus existentes naquelas regiões pois todos sabiam que o pai dele era grego”. É reafirmada a origem multicultural e religiosa de Timóteo. Este acompanha Paulo na 2ª viagem missionária e ao passar pelas cidades “recomendavam aos irmãos que cumprissem as decisões tomadas pelos Apóstolos e pelos Anciães de Jerusalém”(Act 16,4).

A presença de Timóteo é subentendida quando à referência a Paulo e Silas. Timóteo surge-nos em Act 17, 14-15 em Bereia onde Paulo é aconselhado a partir e separa-se de Silas e Timóteo que posteriormente serão referência e equipa na missionação. Estes reencontram-se com Paulo em Corinto, Act 18, 5 depois de passarem pela Macedónia. É por isso que posteriormente, em Act 19, 22 Timóteo e Erasto são chamados auxiliares para irem à Macedónia. A última referência a Timóteo é a sua deslocação a Tróade acompanhado por mais seis representantes das comunidades, em Act 20,4.

segunda-feira

Estêvão – “anjo útil”



“Todos os membros do Sinédrio tinham os olhos fixos nele e viram que o seu rosto era como o rosto de um Anjo.”
Act. 6,15


“Anjo inútil¹

Passou um anjo de rastos
Na selva da minha vida
O sangue dele nos cardos
Ainda hoje tem vida

Rasgou as asas na febre
De me levar mais além
Por esse amor que me teve
Amei-o como a ninguém.”


É interessante como a personagem Estêvão, na sua morte, é também a personagem deste poema/fado. Ele foi um anjo que passou de rastos na selva das vidas daqueles que, não estando sem pecado, lhe atiraram as primeiras e as últimas pedras. Não conseguiram ver as suas asas invisíveis. É também interessante como ele as rasgou por aqueles que rasgavam as vestes… como o sangue de um doce “diakonos” se entranhou subrepticiamente nos espinhos das folhas e flores dos cardos dos corações de “diabolos”… como a febre de quem “adoece” de amor por Cristo abre o céu e ainda leva para o que está mais além dele.

Contudo, se espreitarmos por entre os traços da morte de Estevão veremos ao fundo a cruz de Jesus. Estêvão ao morrer pede para que Jesus receba o seu espírito, tal como Jesus tinha pedido ao Pai, e também como Ele pede o perdão dos pecados daqueles que o matavam. Por isso, este fado também pode ler de alguma forma o próprio Jesus e arrancar-lhe sentidos. Ele foi o próprio Deus (não um anjo) que passou e que rasgou a carne para nos levar mais além (até Ele). E cujo sangue ainda hoje tem vida e é a única coisa que rega os altos cardos da nossa alma. Quem lê os Actos depara-se entre as suas personagens com anjos que abrem as prisões e soltam os apóstolos, mas os apóstolos são de alguma forma anjos (aggelw – anunciar; aggeloi – aqueles que anunciam) que se metem em prisões; que sacrificam as asas para levarem outros a voar. Os Actos são um desfile de personagens que “O amaram como a ninguém” e por isso constituem uma grande escola de relação com Jesus.

Desculpem este “desfiamento” talvez excessivo do poema/fado, numa procura de expor a sua relação com o episódio da morte de Estevão. Decidi partilhá-lo com a restante comunidade de leitores como espécie de proposta de uma banda sonora para esse relato.

¹ Fado escrito e composto por Luís Macedo e cantado por Amália. Se quiseres, tenho esse original da Amália em CD (posso emprestar) ou então podes ouvir a interpretação de Aldina Duarte:


http://www.aldinaduarte.com/site/player/ouvir.php?op=03Anjoinu.wma&idioma=pt

domingo

ACTOS DOS APÓSTOLOS - PSICANÁLISE E TEOLOGIA

Este blog é uma casa habitada por todos nós, onde cada um de nós tem o seu próprio espaço individual. À nossa pessoa compete abrir de par em par as janelas da psicanálise e da teologia, para vermos em conjunto as paisagens que a nossa voz anuncia a todos os leitores da comunidade. Partimos, então, de um trecho do micro-relato lucano “Ananias e Safira” (Act 5,1-6), fazendo um zoom (se nos é permitida essa expressão cinematográfica) sobre a questão da verdade.

ANANIAS E SAFIRA – A QUESTÃO DA VERDADE

“Entretanto, certo homem, chamado Ananias, com sua mulher Safira, vendeu uma propriedade, mas, em acordo com sua mulher, reteve parte do preço e, levando o restante, depositou-o aos pés dos apóstolos.

Então, disse Pedro: Ananias, porque encheu Satanás teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, reservando parte do valor do campo? Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não estaria em teu poder? Como, pois, assentaste no coração esse desígnio? Não mentiste aos homens, mas a Deus. Ouvindo estas palavras, Ananias caiu e expirou, sobrevindo grande temor a todos os ouvintes. Levantando-se os moços, cobriram-lhe o corpo e, levando-o, o sepultaram.”

Pensando psicanaliticamente, a questão da verdade é fundadora, quer em termos epistemológicos, quer em termos clínicos. E, pensando teologicamente, a questão da verdade é, ao mesmo tempo, mistagógica e cristológica, estando radicada no centro da tríplice afirmação de Jesus Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (Jo 14,6)

Passamos, agora, a analisar o trecho de Lucas. A mentira de Ananias não é a mentira de um mentiroso porque ter os lucros como objectivo é uma estratégia de negociante, que dá legitimidade à reserva de parte do valor da propriedade. É, antes, uma mentira mental, sem correspondência com o real, pois o real consiste na adesão ao cristianismo que pressupõe a coerência com a partilha fraterna (cf. Act 2,45). A transição deste universo mental para outro ocorre por meio da descida às profundidades onde Deus habita. Essa descida é a psicanálise ao encontro do "Deus em nós" dos psicanalistas, mas também é a oração perseverante (cf Act 2,42), que toca esse mesmo Deus, o Deus dos cristãos, na Pessoa do Espírito Santo e na totalidade do Deus-Trino, que re-une as três Pessoas. Deus-Trino, sendo Realidade Ùltima, tem natureza simbólica, o que introduz, psicanaliticamente, uma fé científica, que é, ainda, religiosa, na medida em que sem afirmar a essência simbólica de Deus cometeríamos uma idolatria. O Deus dos psicanalistas está na vizinhança do Deus nomeado pela teologia negativa, porque Ele é o Infinito e o Inominável. E o Homem, quem é ele? Ele é aquele para quem a mentira a Deus é constituinte do objecto enlouquecedor. A loucura é, neste trecho, simbolizada pela morte de Ananias, que teria a vida eterna se se tivesse deixado transformar pela verdade, principalmente, na busca da verdade de Jesus, a quem o evangelho pregado por Pedro anuncia.

BIBLIOGRAFIA: DIAS, Carlos Amaral, Tabela para uma nebulosa – Desenvolvimentos a partir de Wilfred R. Bion, Fim de Século, Lisboa, 1997; REZENDE, António Muniz de, “A questão da verdade” in AA.VV., Bion Hoje, Fim de Século, Lisboa, 1996.

HELENA FRANCO
2007-11-25

sábado

O Evangelho inconcusso do Espírito

Há um certo paradoxo em pautar assim a menasagem evangélica tal como os Actos no-la apresentam: este "segundo" livro não apenas parece tornar secundário (mas não inútil) o primeiro livro que é o Evangelho, senão que, sendo obra do historiador anunciada como tal, parece colocar a História que de antemão, pesquisa e conhecimento do passado num lugar secundário das nossas preocupações, se não das suas.
Para entendermos um tal paradoxo e descobrirmos a intenção profunda do livro dos Actos, precisamos de fazer uma reminiscência daquilo que concomitantemente abre este livro e lhe coloca esteriotipadamente a trama: o anúncio e a manifestação do Espírito Santo. Ipsofacto, é capital para o entendimento que devemos fazer da história no livro de Actos: em virtude da presença ao Espírito actuando em cada crente,a História deixa de ser a simples relação de factos e de pessoas do passado, para se tornar o espelho do nosso presente.
Olhar o passado e descobrir aí o que hoje vivemos tal como os nossos ancenstrais o viveram na originalidade do seu tempo: a presença e a acção do Espírito.
Lucas , a propósito de Paulo - tem consciência de que o discípulo se conforma com o seu Mestre, Jesus.Porém não se trata de imitaçaõ articial de uma pessoa desaparecida . Esta imitação é uma vida no presente, porque é conformidade com um Vivo, Cristo ressuscitado,animada pela acção permanente do Espírito.
Entendemos, sem dúvida , assim melhor o cuidado de Lucas na sua maneira de escrever a História , que pode ,por vezes, chocar a nossa mentalidade científica: existem, nos Actos , silêncios,até "erros" históricos.
Finalmente realizando uma obra de historiador à medida do seu tempo Lucas perseguia um outro objectivo: o de nos mostrar o crente sob a acção do Espírito, garantido, por isso de ser, em cada hoje, Cristo vivo.

quarta-feira

Programa de Integração

A minha personagem, Timóteo, é um dos mais óbvios em termos de programa de integração. Actos 16,1 diz que ele era “filho de uma judia crente e de pai grego” e antes de partir em missão com Paulo é circuncidado. O cristianismo desde o seu início, como Timóteo, não é de “raça pura” mas integra o velho e o novo, promessas e profecias, o particular e o universal. Tal como os cães de raças misturadas são por norma mais saudáveis, a diversidade presente desde o primeiro cromosome do cristianismo torna-o robusto e reveste-o duma capacidade de reacção e adaptação.

Hoje em dia a diversidade é aceite e promovida, mas mesmo nos lugares com mais “mente aberta” parece haver sempre um instinto inato de gostar do que se conhece, ou é semelhante, e estranhar o diferente. Não digo só na aceitação de pessoas ou nacionalidades diferentes, mas também no rumo diário e constante da vida. No entanto se há uma coisa que é constante na vida, esta é a a mudança. Se não formos nós a fazer uma luta constante e honesta para ultrapassar os nossos medos e limitações, a vida puxa por nós, tira-nos o tapete debaixo dos pés e vira o nosso mundo ao contrário. Seja pela morte, distância, desilusão, ou então pelos nossos fantasmas interiores, não somos iguais a quem éramos ontem nem nunca podemos voltar a ser.

Os Actos dos Apóstolos, e Timóteo, são um testemunho à vida e a nós próprios, para aceitarmos os desafios do futuro sem esquecer o passado, para alargar as nossas fronteiras a Roma ou até aos confins do mundo e para chegar até Deus.

“Aquele que não está todos os dias a conquistar
algum medo não aprendeu o segredo da vida.”
– Ralph Waldo Emerson

“Um homem de coragem é também um homem de fé.”
- Marcus Tullius Cicero

segunda-feira

Jesus construtor da "comum - unidade"

Como vimos, algumas das personagens são representantes da comunidade: Estêvão, Pedro, Paulo, Barnabé, etc. No caso da personagem Jesus acontece o contrário: Ele não representa a comunidade mas é a comunidade que o re-apresenta a Ele. Consequentemente, nessas personagens singulares em que podemos ver o colectivo, também podemos ver o próprio Jesus, na medida em que representando a comunidade O representam também a Ele.

Exemplifico com alguns paralelismos interessantes: na cura do coxo por parte de Pedro e João entrevemos os milagres de Jesus (são relatos distintos mas com traços de continuidade). A última expressão de Estêvão - “Senhor, não lhes atribuas este pecado” é o eco de uma das frases de Jesus na cruz (Lc 23,34). A itinerância de Paulo pode ser vista como uma “ampliação” da itinerância de Jesus durante a Sua vida pública até à entrada derradeira em Jerusalém (segundo o esquema dos Sinópticos). O próprio processo judicial da condenação de Paulo tem traços comuns com o processo da condenação de Jesus: a ida para Jerusalém, as “armadilhas” do Sinédrio, o facto de andar a saltitar de político para político, etc.

De certa forma, a comunidade é como que uma “sala” de espelhos de Jesus, em que cada personagem constituinte da comunidade o reflecte, num jeito próprio. Elas são, de facto, re-apresentações de Jesus, mas não a papel químico: Jesus vai conduzir a comunidade a descobertas surpreendentes acerca da sua identidade e do seu destino, isto é, revela respostas imprevistas às questões: “Quem somos?” “Para onde vamos?”. Vemos que a auto-percepção que a comunidade tem de si e da sua missão sofre uma metamorfose ao longo da obra. Do grupo de apóstolos inicial fixo em Jerusalém passamos para uma multidão imensa, de ex-Pagãos e ex-Judeus, disseminada pela faixa territorial entre Jerusalém e Roma.

Esta construção da comunidade é feita por Jesus mas através do Espírito Santo. É por ele que Jesus vai actuando na comunidade e através da comunidade (baseando-me numa frase da Julie), constituindo-se Ele como a “comum unidade” da comunidade. Como conclusão, posso afirmar que não é só Jesus que constrói a comunidade, é também a comunidade que reconstrói Jesus.