domingo

Interpretação do texto

Neste Post gostava de deixar algo, que temos ouvido nas últimas aulas tanto dos Actos como dos Sinópticos. Não há história sem a mediação de uma interpretação dada pelo historiador, em que toda a história é um relato que é contado a partir de um ponto de vista.
O texto escrito e a sua relação com o destinatário resulta profundamente alterada. Enquanto que no diálogo o outro é um tu que me escuta, na escrita o destinatário é qualquer um que saiba ler, diz Ricoeur. Desta forma para a hermenêutica ricoeuriana “interessa mais o que diz o texto do que o que diz o seu autor”. Assim, graças à escrita, a “coisa do texto” pode fazer explodir o mundo do autor, um mundo cheio de história.
Por outro lado a mediação pelos textos é enriquecedora, uma vez que a experiência do autor tornada texto se independentiza, torna-se autónoma da intencionalidade do autor, “o que o texto significa já não coincide com aquilo que o autor quis dizer”.
Significação verbal, quer dizer, textual, e significação mental, quer dizer, psicológica, têm, doravante, destinos diferentes”[1], ou seja, o fenómeno da escrita dá ao texto, entendido como uma obra, uma autonomia que implica ao mesmo tempo uma distância com respeito tanto à intenção do autor, como às condições da sua produção. Por outro lado, a autonomia do texto faz possível a sua recontextualização em novas situações cada vez que se realiza uma nova leitura. Desta forma, o texto é uma obra em aberto, pois é actualizado por diferentes interpretações, diz Ricoeur “Compreender-se é compreender-se em face do texto e receber dele as condições de um si diferente do eu que brota do texto”[2].
Da mesma forma que se independentiza do contexto psico-sócio-cultural do autor “o texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico como psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa situação nova: é o que faz o acto de ler”[3] e também se independentiza do conjunto de receptores aos quais se destinava. Para Ricoeur a autonomia do texto tem consequências hermenêuticas importantes, nomeadamente uma maior aproximação entre objectivação e interpretação.
O texto emancipa-se da situação da sua produção, promovendo novas possibilidades de interpretação, de uma construção que é paralelamente construção do sujeito.
Para Ricoeur é na interpretação dos textos que a pessoa se encontra consigo mesma. A pessoa chega à compreensão de si mesma através da compreensão dos textos “a leitura duma obra literária é ao mesmo tempo uma leitura de si enquanto descoberta de si: ler é também, e sobretudo, ler-se, e o texto é a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos”[4].
Finalmente, o texto dirige-se a quem quer que saiba ler, criando o seu próprio auditório, escapando aos limites do face a face.
Ricoeur toma o pensar filosófico como um processo aberto ao não-filosófico, desta forma ele desenvolve um triplo caminho em que a filosofia, a literatura e a teologia podem caminhar juntas, mantendo as suas diferenças específicas, mas, ao mesmo tempo, possibilitando um processo de maior penetração no sentido da realidade.

Anabela Neves Rodrigues
[1] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 118.
[2] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 42-43.
[3] RICOEUR, P. – Do texto à acção, p. 119.
[4] HENRIQUES, Fernanda – Filosofia e Literatura. Um percurso hermenêutico com Paul Ricoeur, p. 16.

Um comentário:

  1. A autora deste post, Anabela, tocou as fibras do meu ser, enquanto ser amante de palavras e da Palavra (Logos).
    Se eu pudesse lia uma biblioteca, depois da provocação da Anabela, na sua leitura aprofundada de Paul Ricoeur.
    Na minha infância pude ler (quase)uma biblioteca porque ela era minúscula. Agora, lido com a incerteza de poder ler Paul Ricoeur tal é o peso da sua obra.
    Lembra-me George Steiner, de quem o livro "Silêncio dos livros" está à espera de mim, perto mas tão longe. pesado mas tão leve.
    BOAS LEITURAS, ANABELA!

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